A confirmação dos assassinatos do jornalista Don Phillips e do indigenista Bruno Pereira traz à tona a violência do Brasil Profundo, aquele que tanto orgulha o Brasil Urbano pela pujança de sua natureza e pelos grupamentos humanos ainda vivendo longe da sociedade globalizada. E que é absolutamente ignorado pelo Brasil federativo, burocrático, de direito.
Nesse Brasil Profundo como no Brasil Urbano, os direitos são reservados a poucos. A diferença é que o Brasil urbano fecha os olhos diariamente para seus excluídos e os classifica como marginais, indolentes, sem obrigá-los a sustentar a gente de bem. Já no Brasil Profundo, os sem-direito são escravizados por quem exerce o poder. É o que detalha A escravidão na Amazônia – Quatro décadas de depoimentos de fugitivos e libertos (Mauad X, R$ 89), de Ricardo Rezende Figueira, Andonia Antunes Prado e Rafael Franca Palmeira, professores de universidades federais do Rio de Janeiro. Parece distopia ficcional, mas é um relatório contundente sobre a degradante situação a que são submetidos trabalhadores em latifúndios no Sul e Sudeste do Pará, numa região entre o Araguaia e o Xingu. Homens e (raras) mulheres são contratados para trabalhar em fazendas das quais jamais podem sair com salários inferiores aos valores cobrados pelos empregadores por alojamento e alimentação, sofrendo maus tratos diversos. Isso quando há salário. A eles, resta fugir e buscar abrigo com entidades civis ou religiosas. Até o fim do regime militar, esses fugitivos praticamente só eram protegidos pela Comissão Pastoral da Terra, liderada por padres católicos.
A política de combate ao trabalho escravo começa a ter expressão a partir do governo Fernando Henrique Cardoso, mas o empenho é maior na administração Lula. De 1995 a 2002, sob FHC, houve 148 operações em 731 fazendas, com 736 resgatados, tendo recebido um total de 3,5 bilhões em indenizações trabalhistas. No governo seguinte, entre 2003 e 2010, foram 906 operações em 2028 fazendas, com resgate de 3,160,8 trabalhadores, que receberam 58,7 bilhões em indenizações. Havia um melhor aparelhamento das equipes que faziam incursões aos latifúndios e acolhiam os fugitivos, impedindo sua captura por jagunços, os chamados gatos.
Segundo os autores, o combate ao trabalho escravo continua no governo Dilma Roussef, mas, após sua deposição, em 2016, a legislação de proteção ao trabalhador “sofreu novos ataques e a possibilidade de acirramento do crime se ampliou”. A escravidão na Amazônia é apenas uma das características de uma região constantemente por quem pretende aproveitar suas riquezas em fauna, flora e minérios, além de usar os caminhos da floresta para traficar substâncias ilegais, acossando a população nativa, poluindo o ambiente, justificando essas agressões como “progresso” e até o motivo para o assassinato de Don e Bruno.
Já no Brasil Urbano, do outro lado do território continental, a ameaça de morte é aos moradores de rua, uma população desnutrida, com diversos dependentes de drogas, que sobrevive de biscates e pequenos crimes. No Centro de São Paulo, a maior cidade do país, esses miseráveis são ajudados por grupos religiosos e entidades civis, mas vêm sofrendo ataques frequentes das autoridades policiais, que tentam impedir a distribuição de alimentos e roupas. Essa realidade inspirou Patrícia Melo a escrever um thriller protagonizado por figuras do lumpen, que já nem sonham com ascensão social, mas apenas em usufruir pelo tempo que der, algum conforto material enquanto buscam sentido para suas vidas. Em Menos que um (Leya, R$ 60), catadores de lixo, camelôs, flanelinhas e ladrões dividem o que angariam diariamente. Alguns ocupam um edifício abandonado, enfrentando a repressão policial como parte do cotidiano. A tragédia do Brasil Urbano continua vista como ficção pelo brasileiro cordial, que vira o rosto a cada pedido de esmola nas ruas das metrópoles. É hora de despertar desse delírio irreal, nem que seja pelo contundente romance de Patrícia Melo.