Mistério sempre há de pintar por aqui

Mesmo sem o esoterismo imortalizado com a frase imortalizada por mestre Gilberto Gil – e usada neste título –, um bom mistério pode fazer diferença na atenção para uma história que esconde os mais diversos subtextos. O mistério é a atração, a nicotina que vai viciar o leitor naquelas bem-traçadas linhas, e disso sabia o jornalista Bruno Thys ao enveredar pela ficção com O canto do violino (Máquina de livros, R$ 48,90). Depois de percorrer as redações cariocas em diferentes funções, Thys montou sua própria editora, especializada em livros de não-ficção, sempre assinados por jornalistas. Em seu primeiro romance, não deixa de lado a informação, que emerge da pesquisa de um advogado e musicista amador sobre a identidade do proprietário de um velho violino.

O violino, sim, acaba no canto. Tanto porque Carlos, o advogado, interessa a tal ponto pelo processo de desvendar o passado que abandona as aulas de música. Dentro do violino há uma estrela de Davi e um pergaminho com uma frase em hebraico, que, descobre Carlos, deveria ter estado dentro de uma mezuzá, a peça tradicionalmente afixada no umbral da porta das famílias judaicas. A jornada de Carlos à procura da identidade do antigo dono do violino é uma apresentação da cultura judaica a leigos que pouco sabem dos costumes de um povo espalhado mundo afora e perseguido historicamente, embora um deles tenha inspirado a religião mais difundida no Ocidente, o cristianismo.

Sem mágoas ou rancores dos personagens judeus que emergem para entregar dados a Carlos, as tradições judaicas afloram a cada página, numa investigação que se desenrola com a lentidão da burocracia brasileira diante da curiosidade acerca de alguém que sobreviveu à perseguição nazista, fugindo para o Rio de Janeiro para uma existência solitária, ligada apenas à comunidade religiosa de Copacabana. Os passos do velho refugiado trazem sempre um dado novo sobre os costumes dos judeus, sua fé e a moral que os mantêm fortalecidos, embora vistos, muitas vezes, como estrangeiros dentro dos países onde nasceram.

O mistério que mantém acesa a curiosidade de quem lê Os abismos (Intrínseca, R$ 59,90), de Pilar Quintana, é o suspense por um desfecho que parece prestes a acontecer a cada capítulo. A menina Cláudia descreve o cotidiano da mãe, indiferente à filha, a quem deu seu próprio nome. O casamento com um homem bem mais velho garantiu a confortável sobrevivência à Cláudia adulta, que, no entanto, alterna períodos de profunda depressão e exuberância, além da obsessão em cuidar de plantas que se espalham pelos cômodos do apartamento em Cali, na Colômbia. O pai provedor traz equilíbrio físico às duas Cláudias, que estão sempre à beira do desabamento emocional, ansiosas por uma existência invejada e gloriosa como as das celebridades retratadas em revistas populares. O fim da inocência da jovem Cláudia é lento, observando as paixões da mãe e a segurança quase inabalável do pai, que oferece uma generosa estrutura material, alicerçada em sua solidez financeira. Quem perde o prumo com reviravoltas gradativas, na dose exata de dramaticidade da vida real, é o leitor. Os personagens tropeçam, mas se apoiam uns nos outros para continuar a colecionar decepções e alegrias diminutas em suas trajetórias solitárias e solidárias.