Desnudar a alma

Algum especialista em literatura desabafou on-line ou em entrevista (difícil recordar, tantas são as informações jogadas em nossos olhos, corações e mentes pela Web) que a imensa maioria da ficção produzida atualmente é em primeira pessoa, prejudicando a produção literária. O desprezo ao narrador onisciente seria uma marca paradoxal dos entendidos em literatura nesses tempos ególatras.

O expert deve ter se esquecido que os principais folhetins, base de tantos romances do século XIX, entre eles David Copperfield, de Charles Dickens, são narrados pelos protagonistas. Virando o século, O grande Gatsby, de F. Scott Fitzgerald, surge a partir das recordações de Nick Carraday, enquanto As virgens suicidas (Companhia das Letras, R$ 30), de Jeffrey Eugenides, é deliciosamente narrado na primeira pessoa do plural, por um grupo de garotos. O inglês Nick Hornby, que nos anos 1990 chegou ao Olimpo dos escritores pop com Alta fidelidade (Companhia das Letras, R$ 39), com narrador em primeira pessoa, em Frenesi polissilábico (Rocco, R$ 38,50), coletânea de crônicas sobre literatura publicadas na revista The Believer, discute o que é a leitura apropriada. Segundo Hornby, “sempre há um jornalista imbecil, metido a esperto, que insiste em dizer que nem deveríamos nos dar ao trabalho de pegar um livro, a menos que seja apropriado”. E que o trabalho de Dickens não sobreviveu “porque nos faz pensar, mas porque “(…) dá vontade de saber o que acontecerá com os personagens”.  

Nick Hornby é um apaixonado por leitura, mais do que pela literatura consagrada, embora releia Dickens obsessivamente. Já vi autores dizendo que a saga de Harry Potter não sobreviverá, como não ficaram para a história tantos livros infantojuvenis. No entanto, existe um desejo de escrever maior do que a vontade de imortalizar a própria obra. E é esse desejo que tem movimentado o mercado editorial brasileiro, com autopublicações muitas vezes bancadas pelos autores, chegando ao público confissões sinceras de quem busca se expressar livremente, sem pretensão alguma de conquistar cadeiras na ABL.

Alguns desses trabalhos de desnudamento têm força literária, sim, e mostram a alma de uma época em que as certezas são desconstruídas rotineiramente, como Essa mulher (Paraquedas, R$ 40), da editora Luciana Figueiredo. Em seu primeiro livro destinado ao público adulto, ela traça a cronologia de uma separação em textos curtos e contundentes. A tristeza, o luto, o reerguer se alternam em ondas, retornando momentos de absoluta infelicidade, compensados pelo aprendizado do caminho solitário, sem o apoio de um amor que um dia foi para a vida toda. Já Filomena, protagonista de Um pouco (Athalaia, R$ 45), de Cecília Aprigliano, musicista e professora de viola da gamba, se desdobra em lembranças entremeadas por hai-kais e poemas rápidos, conclusões complementares dos capítulos. Crônicas encadeadas também falam da trajetória de Malu Leite, que em seu primeiro livro, Um dia você vai saber meu nome (Lacre, R$ 44), apresenta, em diversos estilos de prosa e poesia, o cotidiano de uma jovem mulher na metrópole, a intensidade das buscas, as paixões que atormentam e se sucedem ao longo de um início da vida adulta. Frutos de reflexões pré e pós pandêmicas, esses relatos trazem a autenticidade de autoras que se expõem destemidamente, pela pulsão de registrar o que a maioria das pessoas mantém trancafiado na cabeça. Vale a pena prescrutar essas almas.