Ambiguidade é um conceito pouco compreendido por boa parte da humanidade, embora esteja entranhado em muitos de seus espécimes – talvez em 90% deles. Grandes personagens literários são descritos em todas as diferentes facetas, e não apenas a da “fachada de catedral e alma de cabaré”, a hipocrisia consagrada em figuras criadas por Nélson Rodrigues, que retratou como poucos a pequena burguesia brasileira.
É na volta a um tempo vivido por Nélson que o niteroiense Sérgio Tavares situa o protagonista de Todos nós estaremos bem (Dublinense, R$ 51,18), sua primeira incursão no romance dentro de uma bem estruturada jornada como contista. Talvez venha na experiência de Tavares na criação de contos os sucessivos socos no peito oferecidos a cada trecho da trajetória de Roberto, um empresário que enriquece durante a ditadura, que se envolve com Lúcia, uma militante de esquerda. Os dois universos acabam se fundindo na filha Karla. A infelicidade ao longo dos anos de chumbo talvez possa encontrar alívio com o fim do regime militar, quando o casal entra num frenesi sexual, frequentando orgias, apesar da ameaça da epidemia de Aids. Tragédias se sucedem na vida real, aquela que é alimentada pelo noticiário distante do que se decide no país.
O carioca Fernando Molica faz o caminho inverso ao de Tavares, estreando como contista depois de nove romances publicados. Em Náufragos (Malê, R$ 52), a solidão imposta pelas derrocadas existenciais vêm em testemunhos de figuras contemporâneas que transitam pela megalópole, expondo suas diferenças em esbarrões fugazes do dia a dia. É o motorista de táxi que conta ao passageiro como foi traído pela mulher, o passageiro que relata a vida de sua família ao vizinho do banco do ônibus, o taxista pastor evangélico que conhece orixás, pois já foi da umbanda, o brigão pronto a massacrar qualquer pessoas a socos, desde que lhe deem um motivo. Nada mais carioca do que essas explosões de confidências a estranhos, da confiança no encontro que jamais se repetirá tão bem expressos nessas curtas narrativas de pessoas que qualquer leitor já conheceu. Os solitários que se abrem são a essência do Rio de Janeiro e, talvez, da alma brasileira, embora o vazio que vivenciam permaneça depois de desabafarem com quem não conhecem.
Retrocedendo a uma época anterior às evocadas pelas duas ficções brasileiras, Oppenheimer – O triunfo e a tragédia do Prometeu americano (Intrínseca, R$ 99), que deu a Kai Bird e Martin J. Sherwin o Pulitzer em 2006, mostra essa sociedade que fechava os olhos para suas peculiaridades em nome do progresso e da manutenção da ordem. Cientista brilhante, de temperamento introvertido na juventude, quando teve sucessivas crises de depressão, J. Robert Oppenheimer participou do projeto Manhattan para a construção da bomba atômica norte-americana. Depois das explosões em Nagazaki e Hiroshima, ele se torna ferrenho opositor do uso da bomba, desligando-se do projeto. Acaba presidindo a Comissão de Energia Atômica dos EUA, sendo demitido durante o macarthismo, sob alegada simpatia aos comunistas. O livro foi a base para o roteiro da biopic que estreia nos cinemas mundo afora, com o irlandês Cillian Murphy na pele do controverso “Oppie”, personagem fascinante, que deixa o leitor um tanto ressabiado quanto a suas intenções, mas que torna a leitura tão irresistível quanto o biografado.