Entre 2009 e 2011, o jornalista Marcelo Moutinho viveu o luto pela morte de seu pai escrevendo contos que tratam da solidão pela ausência. São textos marcados pela profunda melancolia, que são retomados neste relançamento, dez anos depois. Com ilustrações de Raul Leal, que fabricou tintas usadas nas – belas – imagens com cinzas recolhidas em queimadas, os dez contos A palavra ausente (Malê, R$ 48) têm apoio pictórico sempre remetendo à perda, reconhece Marcelo Moutinho, que fez o lançamento desta nova versão do livro no último sábado, 10 de setembro, na Livraria Janela (Rua Maria Angélica 171 B, Jardim Botânico).
Dedicado ao pai, o livro traz sua figura no primeiro conto, Água. A situação constrangedora de um adulto ajudar um idoso/doente a tomar banho é descrita com mais emoção do que crueza. O pai, irritado, mas sabendo que necessita de ajuda, o filho triste com a inversão dos papéis, sente que jamais terá o comando da situação.
Se é clara a relação entre o tema da perda e a morte do pai, existe uma diferença entre o narrador e o autor, afirma Moutinho. “Mesmo o primeiro conto, inspirado numa situação que experimentei na pele, traz elementos ficcionais. Tenho observado, no debate público, certa confusão quanto a essa relação. Leitores exigindo que ficcionistas tenham lugar de fala, o que seria uma negação da própria gênese da ficção. Ficção não é testemunho pessoal, é fabulação. É a experiência da alteridade levada ao paroxismo. Como dizia Rimbaud, “eu é um outro”, diz Moutinho.
Depois do primeiro lançamento do livro, Moutinho viveu momentos pessoais de grande impacto, como o nascimento de sua filha Lia, em 2015. A paternidade, diz ele, “é um verdadeiro cavalo-de-pau na vida da gente: mudam perspectivas, o modo de agir, de uma hora para outra nos vemos impedidos de morrer”. Mal havia se passado um ano da chegada de Lia, a mãe de Marcelo é morta, num atropelamento: “As duas pontas da existência se trombaram”, conclui o escritor. As mudanças significativas não levaram a alterações nos contos, mas a algumas supressões de trechos que lhe pareciam redundantes, num olhar mais maduro.
Um traço comum aos contos é a falta de comunicação. Segundo Marcelo Moutinho, as personagens refletem um problema contemporâneo e que só piorou nesses últimos dez anos. “É curioso: hoje temos nossas redes sociais, uma ampla gama de “amigos” e “fãs”, opinamos sobre tudo, e no entanto a cada dia parecemos mais perdidos no labirinto da incomunicabilidade. A lógica da bolha, segundo a qual o que importa é a concordância e a subscrição, se impôs de forma quase autoritária. Temos dificuldade em lidar com a diferença e mesmo com os processos de conflito que fazem parte da vida. O botão de “delete”, assim como o de “bloqueio”, sugere a aniquilação imediata daquilo que soa incômodo. Mas é apenas ilusão. E uma ilusão que só traz sofrimento. A dor não vai embora com um clique”.
Uma das personagens de que Moutinho se apropriou foi a poeta portuguesa Sophia de Mello Breyner, por quem confessa a admiração apaixonada devido a seu uso do universo do mar como tema. Por muito tempo, ele morou perto da praia, o que pode ter levado a perceber o mar como referência. “Em Manaus e na Floresta Amazônica, me deparei com pessoas que tinham uma intimidade semelhante, só que com o rio. Daí veio a ideia de criar uma história na qual a Sophia encontrasse uma mulher amazonense em quase tudo diferente dela, e, a partir das discrepâncias entre as duas, fazer ecoar proximidades que, à primeira vista, soariam insuspeitas. Foi um conto que demandou pesquisa. Até porque, na construção da personagem, incluí hábitos que a poeta manteve ao longo da vida, como o de tomar vinho branco”.
Ao imaginar a nova edição de A palavra ausente Moutinho queria montar um livro bastante distinto do anterior, inclusive graficamente. “Daí a proposta desse diálogo com as artes visuais. Sou admirador do trabalho do Raul Leal que teve uma forte identificação com os textos. Não queríamos desenhos que se limitassem a reproduzir, sob a matriz de imagem, a história ficcional. E sim, uma leitura livre, na qual as duas formas artísticas se retroalimentassem, em efetiva interlocução. O Raul então propôs o trabalho com base nas cinzas colhidas em queimadas ao longo do país. Assim, desde seu substrato, os desenhos se relacionam com os contos do livro. Que, afinal, tratam da questão da perda nas mais diferentes matizes”.