Ah, o século XX. Aquela perene sensação de incômodo por viver em ambientes acanhados compartilhados por pais e filhos, alimentar-se apenas para sobreviver, disputar trabalhos extenuantes – e escassos -, enfrentar um cotidiano de violência como prática difundida entre famílias. Tais elementos, constantes na literatura europeia produzida por mulheres no século XX, trazem à luz uma opressão bem recente em países que hoje estão à frente das conquistas sociais e profissionais. A inadequação, presente na Tetralogia Napolitana, da italiana Elena Ferrante, que cobre um período de 60 anos, iniciado na década de 1950, e nos livros de autoficção da francesa Annie Ernaux, prêmio Nobel de Literatura de 2022, já era experimentada pela dinamarquesa Tove Ditlevsen (1917-1976) nos três volumes reunidos na Trilogia de Copenhagen (Companhia das Letras, R$ 71,91) — publicados entre 1960 e 1970.
O reconhecimento literário de Tove Ditlevsen, estrondoso em seu país, porém mais discreto mundo afora, foi retomado há cerca de cinco anos, quando novas traduções e edições de sua obra surgiram na Europa. Ditlevsen começou a publicar mal passando da adolescência e teve livros recomendados pelo sistema nacional de Educação da Dinamarca, notadamente pelo estilo vibrante e lírico que impregnou seus títulos de memórias, entre eles Infância, Juventude e Dependência, nos quais conta sua trajetória de criança à vida adulta.
A atual voga de autoficção feminina trouxe Ditlevsen ao Brasil. Como Annie Ernaux e a personagem Lenu, alter ego de Elena Ferrante (pseudônimo que seria, dizem, da tradutora Anita Raja ou de seu marido, o escritor Domenico Starnone), a jovem Tove só pode ascender da classe trabalhadora através da literatura que produziu. O amor pela leitura vem do pai, sindicalista politizado que sustenta a família com subempregos diversos. Adolescentes, ela e o irmão começaram a trabalhar. A política de bem-estar social ainda engatinhava no pós-guerra, impedindo jovens de almejarem profissões ligadas ao intelecto. Enquanto o irmão contraía doença pulmonar como pintor de carros, Tove faz faxina, cuida de crianças, exerce funções diversas em lojas e escritórios – calando sobre os abusos sexuais cometidos contra ela por alguns empregadores. É o irmão que a incentiva a persistir na poesia, que o pai não considera adequada como ocupação de uma mocinha.
A agressividade estruturava a dinâmica da família e de uma época de raras demonstrações de carinho entre parentes, amigos e até namorados, mas o fascínio da menina pela mãe, ao longo da vida, é expresso desde as primeiras linhas que descrevem o encanto filial pela figura materna: “Pela manhã havia esperança. Ela se assentava como um reflexo esquivo de luz no cabelo preto e macio de minha mãe, que eu nunca ousava tocar, e se depositava em minha língua com o açúcar do mingau que eu ia comendo devagar (…). Minha mãe estava sozinha, mesmo comigo ali, e se eu ficasse completamente imóvel e não dissesse nada, a paz distante em seu coração imponderável poderiam perdurar até a manhã ficar velha (…).”
A insegurança da juventude evolui para A angústia é sua companheira permanente. O último livro da Trilogia descreve sua dependência química, que se solidifica no terceiro casamento com um médico que lhe receita opioides. O título original “Gift” significa tanto “casada” quanto “veneno”, em dinamarquês, abrangendo, talvez, o turbilhão que redundou em sua morte por ingestão de medicamentos. Precavida, três anos antes de morrer, deixou pronto seu próprio obituário, em terceira pessoa. Ao destacar a importância de suas memórias, ela credita a esses registros, com ironia, sua própria solidão: “Infelizmente, seus contemporâneos não apreciaram sua honestidade, o que acabou fazendo que nenhum homem ousasse conversar com ela na rua, por medo de aparecer em seu próximo volume”.