Quanto mais avançamos tecnologicamente, mais freudianos nos tornamos? Esta pode ser uma das questões suscitadas pela onda de autoficção na literatura, que junta episódios da biografia do autor a alguma reflexão, dúvidas existenciais, acontecimentos gerais e um tanto de criação. Esse abrir o coração mesclando as fragilidades de cada um à narrativa ficcional fez a glória de Annie Earneaux, a francesa premiada com o último Nobel de Literatura.
Caminho semelhante é percorrido pela italiana Rossana Campos em Onde você vai encontrar um outro pai como o meu (Âyiné, R$ 38,80), que recebeu os prêmios Elsa Morante de literatura e o Strega Giovanni, destinado a livros para jovens adultos, embora seu público não esteja restrito a determinadas faixas etárias. Talvez por tratar dos conflitos com a autoridade paterna e da dinâmica familiar, o romance tenha sido abraçado por tal nicho. A morte do pai leva Rossana a procurar descobrir quem ficará na sua lembrança, o homem carinhoso, acolhedor e incentivador da filha, ou o alcoólatra sem ocupação definida desde sua demissão da força policial, violento sempre que se excedia na bebida. A única forma de romper com o modelo feminino submisso ao patriarca é deixar a cidadezinha onde cresceu, para a qual volta apenas no momento de velar o pai. As parcas boas lembranças se destacam ao montar o retrato desse homem convencional em sua própria mediocridade, que incomodava e constrangia a família enquanto viveu.
Finalista do Strega de 2021, Lisa Ginsburg também circunscreveu ao lar o cenário de seu Cara Paz (Nós, R$ 66,90), o microcosmos de ondem partem personagens que nem sempre reproduzem o modelo convencional conhecido desde a mais tenra infância. As irmãs Maddalena e Lina vivem em um peculiar âmbito doméstico, criadas por uma preceptora depois que a mãe é obrigada a deixar o lar, quando se descobre seu caso amoroso extra-conjugal. O pai trabalha em outra cidade, mas monta uma estrutura adequada para as filhas, que visita em fins de semana. O título é uma analogia à palavra carapaça, homófona à expressão em italiano, e símbolo do amadurecimento das duas órfãs de pais vivos.
Ao contrário de suas personagens, Lisa Ginzburg, filha do renomado historiador Carlo, e neta de Natalia Ginzburg, apontada por boa parte das gerações de escritoras, entre elas o fenômeno Elena Ferrante, como influência direta na narrativa feminina italiana contemporânea, contou com o apoio da família em sua trajetória. A avó leu alguns de seus primeiros esboços e a incentivou a abraçar a literatura. E Lisa desenvolveu essa particular narrativa em um universo semelhante ao de várias tramas criadas pela avó.
Um elemento recorrente na ficção de Elena Ferrante também está presente: o abandono do lar é compensado pela excelente carreira profissional da mãe infiel, que também encontra um grande amor. Na Tetralogia Napolitana, de Ferrante, a personagem Lenu deixa as filhas para viver um grande amor, ganhando mais reconhecimento profissional. A família que oprime a mulher e impede a descoberta de seu talento precisa ser rejeitada é pano de fundo de todas essas histórias, que burilam sofrimentos até apresenta-los, lapidados, sob a ótica da dúvida: foi triste, mas não extraordinário, acontece com todos, ou foi extraordinário porque a tristeza nos torna semelhantes a todos os outros, sempre quando se deixa o berço?