Há muito já se classifica o estupro não como um crime motivado por desejo sexual, mas pela perversidade de pessoas que pretendem exercer poder sobre as vítimas. A covardia perpetrada e os traumas causados a quem foi seviciado restringe o acesso a relatos e aos processos contra os criminosos – o crime é hediondo, as descrições repugnantes. Entre 2014 e 2022, o papa Francisco lançou quinze documentos sobre abusos de menores e transformou o combate à pedofilia em bandeira principal de seu pontificado. Uma pesquisa de três anos dos jornalistas Fábio Gusmão e Giampaolo Morgado Braga em mais de 25 mil páginas de 108 processos contra sacerdotes brasileiros resultou num documento minucioso, tratado com extrema sobriedade: Pedofilia na Igreja – Um dossiê inédito sobre casos de abusos envolvendo padres católicos no Brasil (Máquina de Livros, R$ 72).
A leitura é difícil, duríssima, diante de tantas histórias terríveis contra 148 crianças, adolescentes ou pessoas com deficiência intelectual, forçados a ter relações sexuais com quem deveria apoiá-los social e espiritualmente. A grande maioria das vítimas compartilha essa posição de vulnerabilidade em relação aos agressores, que justificam de maneira abjeta os abusos cometidos. Além do levantamento dos casos, os autores ouviram advogados, policiais, psicólogos, integrantes do clero, vítimas e suas famílias e especialistas no tema. Apenas um padre condenado aceitou conversar com os jornalistas, que colheram depoimentos também de representantes de redes mundiais de apoio a vítimas de abuso por sacerdotes católicos.
Um aspecto doloroso de boa parte dos incidentes é a perseguição aos parentes das vítimas nas localidades onde viviam. Algumas famílias tiveram que deixar bairros onde moravam há décadas devido à incompreensão dos vizinhos, que culpavam as vítimas pelos abusos, defendendo os criminosos, prestigiados pelo cargo ocupado dentro da comunidade. O relato descrevem crimes cometidos a partir do ano 2000 por arcebispos, bispos, monsenhores, padres, frades e a conivência de uma freira – que hoje é leiga – em 96 cidades de 23 estados brasileiros.
As denúncias surgem depois de muito tempo de acobertamento dessas situações no mundo inteiro. A conscientização dos fiéis sobre a existência de estupradores com autoridade clerical é recente. Segundo o jornalista francês Fredéric Martel, autor de No armário do Vaticano – Poder, hipocrisia e homossexualidade (Objetiva, R$ 57,99), os abusos sexuais pela Igreja teriam a conivência de cardeais e bispos ativamente homossexuais – o que explicaria o motivo de 85% das vítimas de estupros cometidos por padres são meninos ou homens. Nos índices gerais de abusos sexuais, as mulheres são a ampla maioria das vítimas.
Traduzido para vinte idiomas, o livro vendeu mais de 400 mil cópias desde seu lançamento, em 2019. Depois de fazer cerca de 120 entrevistas ao longo de quatro anos, com 1500 pessoas, entre cardeais, bispos, monsenhores, embaixadores, núncios apostólicos, padres e seminaristas em 30 países, Martel afirma que a cúpula do Vaticano é dominada por bispos conservadores idosos, ferrenhos adversários de atualizar a doutrina em questões como contracepção, união civil de casais gays ou divórcio. Embora homossexuais, eles levam uma vida dupla, mostrando-se publicamente homofóbicos.