Leitor contumaz é um romântico de muitos afetos, quase a encarnação daquela música do Gilberto Gil* que sonha em ter diversos corações para se apaixonar por muita gente ao mesmo tempo. Esse leitor abre um livro aqui, folheia, se encanta, fecha e guarda para ler mais tarde. Uma breve degustação das páginas deixadas de lado até surgir um momento perfeito para saborear a obra. E ainda guarda alguns já foram consumidos, dos quais não consegue se separar: abre, relê trechos, sorri, devolve à pilha que se equilibra na mesa de cabeceira. É difícil encerrar o namoro, melhor deixar próximo a pequenas joias que evoluem da fase de paquera para o flerte. Como as seguintes.
Em O evangelho do novo mundo (Rosa dos Tempos, R$ 40), Maryse Condé reinventa um Jesus Cristo dos trópicos e contemporâneo, um bebê encontrado por um casal sem filhos no domingo de Páscoa. Carismático, protegido por uma entidade misteriosa, sábio e admirado por multidões, Pascal sofre como qualquer homem com a injustiça e o desprezo até ser inocentado das falsas acusações que lhe imputam. O universo mágico de Condé desta vez se desloca pelo Caribe e vai até o Brasil, uma das paragens de Pascal, cuja primeira palavra que conheceu em português é favela, uma “chaga” amenizada pela proximidade da beleza natural da praia “que sempre corrige a feiura dos lugares”.
O Brasil profundo, com suas disparidades e tragédias, está em Selva – Madeireiros, garimpeiros e corruptos na Amazônia sem lei (Intrínseca/História Real, R$ 47,90), de Alexandre Saraiva. Por dez anos, Saraiva esteve à frente da superintendência da Polícia Federal nos estados de Roraima, Amazonas e Maranhão. Perdeu o cargo depois de liderar a maior apreensão de madeira ilegal da história do país e denunciar à justiça o então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, por obstruir a fiscalização, quando questionou a operação policial e exigiu a devolução da carga de 226m³ aos madeireiros investigados. Demitido, Saraiva relata o processo que culminou com sua exoneração e fala sobre o tráfico de madeira, a grilagem de terras e suas ramificações entre políticos, policiais e membros do judiciário.
A jornalista Ruth Reichl formou-se em sociologia, mas, amante da boa mesa, comandou a cozinha de seu próprio restaurante na Califórnia, antes de se tornar editora de gastronomia do The New York Times. Ela conta sua trajetória em A parte mais tenra – um saboroso aprendizado de vida (Objetiva, R$ 45), recordando a infância e adolescência no enfrentamento diário com a péssima culinária da mãe, que não se incomodava em servir alimentos com validade vencida em jantares formais. Uma temporada em colégio interno fez a jovem Ruth descobrir o prazer da comida, quase esquecido quando viveu com o marido numa comunidade alternativa focada em alimentação natural – e sem sabor. Divertido, traz – poucas – e inusitadas receitas, como a de sua mãe, que apresentou um prato de presunto feito de carne em conserva.
*Corações a mil.