Os livros ficaram mais caros e nem sempre um leitor contumaz se anima a comprar o que chegou às prateleiras das livrarias virtuais ou físicas. Ainda é em sebos que estão as melhores ofertas de títulos, por vezes ainda recentes no mercado. É possível encontrar neles, a preço de revista, O acontecimento (Fósforo, R$ 56 – valor de livraria virtual), em que a francesa Annie Ernaux relata o aborto a que se submeteu nos anos 1960, aos 22 anos, quando a prática era ilegal na França. O livro chegou ao Brasil antes de Ernaux ganhar o Nobel de Literatura ou vir à Festa Literária de Paraty (Flip) do ano passado, quando a escritora se popularizou com suas reflexões sobre um tema dileto: ela própria. É assim em O lugar, em que conta como ascendeu da classe média baixa por abraçar o Magistério, ou em Os anos, um compilado autobiográfico sobre seis décadas de vida.
Há quem diga que toda biografia é ficcional, mas Ernaux faz questão de dosar cuidadosamente a lembrança de um fato com precisão quase jornalística na descrição de cenários e outros personagens. Por mais distanciada que se mantenha – o aborto, conclui, era a provação que precisou conhecer para aceitar “a violência da reprodução” no próprio corpo e tornar-se “lugar de passagem das gerações” – há sentimentos e sensações paradoxais, o que aproxima o relato frio do autor. O personagem Annie é frio, solitário e sofrido, autoconstruído pela busca do conhecimento e rejeição à família de pequenos comerciantes. Ernaux diz que seu desejo de escrever foi a necessidade de representar fielmente o feminino na literatura, com a autenticidade que jamais encontrou nos autores homens. O cuidado com o texto é quase científico: a dor física e a angústia causada pelo aborto podem ser relatadas objetivamente, mas comovem intensamente: apesar da certeza de que não quer ter o filho, existe um sofrimento psicológico intenso e que vai marcá-la pelo resto da vida. Há dois livros recém-lançados de Ernaux, versando sobre ela, claro. (Quem segurar a ansiedade, poderá encontrar a bons preços em sebos.)
Outras mulheres trouxeram relatos pessoais ao longo do século XX, como a francesa Marguerite Duras, com suas duas versões sobre o caso amoroso que viveu, adolescente, na Indochina, com um chinês rico – O Amante e O amante da China do Norte. No entanto, é clara a criação de algumas situações que permeiam os textos, e Duras teve uma obra marcada pela ficção. A trilogia Autobiografia Viva da sul-africana Deborah Levy mescla as revelações pessoais com observações sobre o fazer literário e as escritoras com quem sua literatura dialoga, entre elas Duras, Simone de Beauvoir e Elena Ferrante. Nos três volumes, principalmente no último, Bens imobiliários (Autêntica, R$ 51,90), Deborah Levy trata de uma preocupação básica da mulher que tem família para sustentar: como montar um patrimônio sólido para seu próprio conforto e garantir um legado para as filhas.
Personagem de sua própria história, a italiana Maria Grazia Calandrone foi adotada aos oito meses. Os pais biológicos se suicidaram, os adotivos a festejam intensamente. Em Brilha como a vida (Relicário, R$ 47,52), ela descreve a trajetória da menininha adorada que se transforma em adolescente rebelde e na adulta responsável pelos cuidados com a mãe idosa. Não faltam conflitos, nem momentos de afetividade, uma relação tumultuada pelo fantasma da rejeição. A linguagem é arrebatada, poética, de intensidade calorosa – bem como o relacionamento de uma família.