O termo ‘autoficção’ surgiu nos anos 1970, para definir textos autobiográficos que transcendiam a narrativa e nem sempre seriam totalmente fiéis aos fatos. O gênero arrebatou críticos mundo afora e se consagrou com o Nobel de Literatura de 2022 para a francesa Annie Ernaux, que mistura seus relatos pessoais a acontecimentos diversos. A diferença das biografias tradicionais está no desnudar de alma dos autores, que não se limitam a encadear episódios vividos, mas a refletir sobre as transformações que a vida impõe com profundidade. Das análises frias do momento de revisão do passado vem muito exercício literário e a sensação de intimidade real do leitor com o autor.
A classificação do que seriam vulgares memórias como ‘autoficcção’ garantiu um verniz ao gênero, desprezado pela crítica (a acadêmica) tanto quanto novelas policiais e livros de autoajuda. Para aproveitar histórias de vida e as reflexões sobre elas sem o rigor científico, melhor é desligar-se da rotulação e saborear a brilhante trilogia Autobiografia Viva, da sul-africana Debora Levy. Os dois primeiros volumes, Coisas que não quero saber (Autêntica, R$ 54,90) e O custo de vida (Autêntica, R$ 54,90) receberam o Prix Femina* para ficção estrangeira em 2020. Em Coisas, Deborah Levy fala sobre a infância, a prisão do pai por motivos políticos, que levou à mudança da família para a Inglaterra, onde os pais se separaram, e o desejo de se expressar pela escrita, pois escrever a fazia se sentir “mais sábia do que realmente era”. No segundo volume, já escritora consagrada, ela lida com a vida depois da morte da mãe e o fim do casamento, montando um novo lar ao lado da filha adolescente num apartamento em que a mobília da ampla casa anterior passa a abarrotar espaços mais acanhados. Resolver incessantes problemas domésticos – não faltam canos vazando ou entupidos – e trabalhar em excesso, aproveitando a excelente fase profissional, são parte de uma rotina atulhada de afazeres que não a impedem de racionalizar a nova etapa da vida. “Separar-se do amor é viver uma vida livre de riscos. Qual o sentido desse tipo de vida? (…) Viver sem amor é uma perda de tempo. Eu estava vivendo na República da Escrita e dos Filhos”, conclui, buscando semelhanças com as francesas Marguerite Duras e Simone de Beauvoir, que conheceram a solidão da mulher/a dedicação à literatura no tempo em que mulheres precisavam ser casadas, mães e donas de casa. “Em tese, a serenidade é um dos personagens principais na antiquada personalidade cultural da feminilidade. (…) A feminilidade, como uma personalidade cultural, já não era expressiva para mim”.
Em O coração que chora e que ri – Contos verdadeiros da minha infância (Bazar do Tempo, R$ 62,90), Maryse Condé fala sobre sua infância e adolescência entre Guadalupe, onde nasceu, e Paris, destino preferido para longas estadas da família de classe média alta do arquipélago no Caribe. O esnobismo de uma sociedade que desprezava os brancos, descendentes dos invasores, mas que não se enxergava também como ocupante de uma terra cujos habitantes originais eram indígenas, é cristalizado pela mãe, que teve sete filhos antes da temporã Maryse, que se radicou na França para fazer faculdade. Prestigiada entre os colegas da Sorbonne por seus textos e atividades que promovia no grupo cultural Luís Carlos Prestes (!), ela foi reprovada na Universidade e o pai se recusou a pagar suas férias em Guadalupe. “Essa decisão, dentro de uma certa lógica, teve uma consequência terrível. Eu nunca mais veria minha mãe viva”.
Já há quem diga que a autoficção se esgotou. Por enquanto, vale se deliciar com essas confissões – que podem ser verdadeiras. Ou não.
*O Femina é uma premiação francesa que tem apenas mulheres no júri. Foi criado no início do século XX em contraponto ao Prêmio Goncourt, que, na época, só tinha homens entre os votantes. O Femina premia autores de todos os sexos.