É desconcertante rever o grande amor, já dizia Chico Buarque na letra da linda Anos Dourados, bela canção de Tom Jobim. Reencontrei meu penúltimo namorado literário, Andrea Camilleri, que acabou de ter publicado no Brasil Sequestros na noite (LP&M, R$ 54,90), outra investigação do comissário Salvo Montalbano e sua atrapalhada equipe da delegacia de Vigáta, cidade fictícia que o autor criou à imagem e semelhança de sua Porto Empedocle natal, na Sicília. Surge um Montalbano mais maduro – o romance é de 2015 –, um tanto menos irônico e sem as habituais brigas telefônicas com a eterna noiva Lívia.
As cenas hilariantes de outras aventuras de Montalbano também ficaram no passado. É um protagonista mais filosófico que surge ao desvendar um caso estranho e bem urdido pelo criminoso. Resta rogar à LP&M que aproveite o impulso e traga novos livros da série de 34 livros, que só conta com 17 títulos publicados no Brasil. No momento, a editora relançou A forma da água e O cão de terracota, com capas mais do que conhecidos por aqui. Um senão: a tradução emprega “vossenhoria”, uma corruptela de “vossa senhoria”, provavelmente imitando o dialeto siciliano, como forma de tratamento pelos subordinados de Montalbano. Um simples “senhor” mostraria o distanciamento natural e contemporâneo.
Talvez a melancolia do último Montalbano a chegar em Pindorama nem acontecesse caso não houvesse surgido, em 2005, o subchefe de polícia Rocco Schiavone, que rejeita o tratamento de ‘comissário’, cargo extinto na época de lançamento de Pista negra, o primeiro dos romances de Antonio Manzini a apresentar o recém-transferido policial de Roma para Aosta, cidadezinha nos Alpes italianos. O frio e a neve acabam com o humor e os calçados de Schiavone. Sua equipe é composta por tipos bem pitorescos, protagonistas de situações mais hilariantes do que as descritas por Camilleri, cujos elogios a Manzini salpicam as capas de seus livros. Se Montalbano não carrega traumas ou problemas do passado a resolver, Schiavone é um poço deles. Viúvo, se envolve com qualquer mulher razoavelmente bonita de quem se aproxima, sem conseguir manter uma relação estável. A irreverência e a arrogância, suas marcas registradas, o tornam uma figura ridicularizada pelos próprios subordinados, principalmente ao fazer questão de rejeitar a província e tecer loas a Roma sob qualquer pretexto.
Enquanto Montalbano é um policial com peculiaridades estranhas ao modelo consagrado pelos europeus (retidão, apresentação de mandados, cuidado com evidências), Schiavone destoa por origem. Seus amigos de juventude, a quem sempre recorre, são pequenos marginais, alguns com ficha corrida na Justiça. Sua honestidade é bastante relativa. Sem qualquer pudor, se apossa de parte de dinheiro sujo de mafiosos, cooptando um de seus agentes para ações que envolvem pequenas recompensas ilegais – o arguto agente Italo Pierron, namorado da bela inspetora Catarina Rispoli, que aceita flertar com Schiavone. Na delegacia de Vigata, reina, em estado perene de pré-alucinação, Cantarella, um gênio de computação, de inteligência prática limítrofe à normalidade. Já o alívio cômico para os crimes em Aosta está na dupla D’Intino e Deruta, sempre encarregados de atividades sem qualquer importância para não arruinar o trabalho dos outros policiais.
A morte de Andrea Camilleri deixou para Antonio Manzini o encargo de manter vivo na literatura o inspetor pouco cerebral, um tanto conivente com a violência e, sinal dos tempos atuais, bem mais complacente com a desonestidade. Que venham novas aventuras de Schiavone, o sucessor de Montalbano, que, por sua vez, trouxe um novo olhar para o policial humanizado, encarnado ao longo do século XX pelo comissário Maigret, de Georges Simenon. (Até agora, só foram publicados aqui os quatro primeiros livros da série de Schiavone. Sim, já li todos. E continuo com saudade de meu ex.)