Um leão ou um ator

Artista, quando é bom, abduz como um extraterrestre a plateia, seja no palco do teatro, ou diante de uma tela, hipnotiza, arranca suspiros de admiração, emoção e fascínio.

E como se uma labareda incandescente queimasse o espírito, quando Gisele, interpretada por Silvero, se agiganta nas cenas, levando o público a sentimentos distintos, de ira, de alegria, ou de tristeza. Inúmeras sensações simultâneas, causadas por esse bem construído personagem e por um texto irretocável.

A dramaturgia é tão densa, que os espectadores parecem transformados em esfinges – aquelas imagens icônicas da arquitetura egípcia – e ficam assim absortos e estáticos, diante da célebre obra de Silvero Pereira. É possível ter a alma, momentaneamente, sequestrada por tão competentes mãos, no espetáculo “Br – Trans”.

Mesmo diante de um texto tão revelador, que implica em repulsas diante do caos humano em relutar entender e aceitar o diferente, o ator Silvero transforma seu texto em arte, pois só mesmo dessa forma, torna-se possível digerir a realidade, que envolve o universo dos transexuais.

A qualidade cênica do ator é de imensurável valor e não existirão críticos capazes de desenvolver um texto que dimensione a grandeza dessa obra, desse universo recriado “Br – Trans”.

O texto explicita verdades nem sempre conhecidas por todos e desnuda também as mediocridades vividas por essa parcela sofrida da sociedade.

“Br Trans” nasceu de um estudo profundo feito de Norte a Sul desse país plural e multicolorido. Inúmeros relatos de histórias foram ouvidos e transportados em um processo cênico fidedigno, pois revela e escancara a realidade da vida dessas pessoas.

Pergunta-se até que ponto o texto não tem um viés da vida do próprio dramaturgo, que não se acanha em manifestar sua repulsa no palco. Até que ponto a ficção se mistura à realidade?

“A tragédia em cena já não me basta. Quero transportá-la para minha vida. Eu represento totalmente a minha vida. Onde as pessoas procuram criar obras de arte, eu pretendo mostrar o meu espírito. Não concebo uma obra de arte dissociada da vida.”
(Antonin Artaud)

Já são mais de 40 mil espectadores em anos na estrada, prêmios aglomerados chancelam a obra, que agora, diante de um dos piores momentos da história do Brasil, volta a agraciar o público pelas redes da internet, para sorte de quem ainda não assistiu.

O rico figurino exposto desde botas vermelhas a vestidos elaborados, em um verdadeiro show de cores, que contrastam com o cenário útil, porém menos matizado. Uma caracterização simplesmente irretocável, irrepreensível.

Não há arranhões em um espetáculo que indubitavelmente está mais maduro que nunca.
O público pode esperar qualidade, vigor, primor e consistência.

Musicalidade e teatralidade andam de mãos dadas. É um verdadeiro gozo auricular e ocular quando o solista chega ao clímax por meio da Geni de Chico.

Entre todas as outras trilhas cantadas, infindavelmente tem-se que glorificar a genialidade do ator. As caras e bocas do Silvero se identificam com as da personagem, que não faz economia nesse processo de criação.

O país onde mais se mata homossexuais merece ter espetáculos como “BR Trans “ em evidência sempre. A militância é um grito e deve-se gritar também diante das histórias apuradas por Silvero em suas andanças pelo país, histórias que se confundem a tantas outras e até hoje, insistem em aflorar na sociedade, como tabu, camufladas por uma peste chamada preconceito.

A diretora Jezebel De Carli é professora de teatro da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul e tem um extenso currículo, com aglomeração de prêmios, mas o que cabe ressaltar nesta resenha é o seu olhar de águia, olhar robusto, olhar harmônico, que transcende seu conhecimento cientifico, pois para se entender tanto de uma obra, considerada entre as 10 melhores (em 2015), é preciso muita competência.

É preciso entender profundamente a dramaturgia de um autor e do ar, que dará oxigênio e vida aos personagens, é preciso também entender o olhar do outro, emergir e submergir diversas e diversas vezes. É ter domínio, porque não se trata de qualquer obra. É preciso misericórdia com uma classe tão desaventurada na sociedade. É preciso não só passar pela Br Trans, mas ajudar a construir, continuamente, essa via, que deveria ser de mão-dupla, onde não se pagaria um pedágio tão pesado e injusto!

Foto Henrique Kardozo