Um amor fora das convenções

E se uma sociedade ainda dorme nesse universo homofóbico é porque não aderiu não só ao tempo, mas a sua velocidade.

Quem foi Gertrude Stein?

Ela fez parte dos jovens oriundos de todas as partes do mundo, que se encontraram na distinta Europa, assim como Picasso, dando novos horizontes às artes, com movimentos vanguardistas importantíssimos para a História da Arte.

O livro Autobiografia de Alice B. Toklas foi escrito pela genial Gertrude com uma escrita própria, admirada por literários da época.

E quem foi a sua personagem Alice?

Foi a sua companheira, moraram juntas e o endereço delas era o ponto de encontro dos gênios, além do próprio Pablo, o extraordinário bailarino Nijinski, Cocteau, Matisse, entre outros, também não menos importantes. O endereço tornou-se lendário, nem é necessário explicar a razão.

E o que a atriz Nicole Cordery tem com essa história?

A atriz encarna com simpatia Alice, desde 2016, quando iniciou sua aventura nesse papel, e presenteia os espectadores com partituras corporais lindíssimas e deliciosas. Sua fisionomia facial conecta a plateia. Notáveis os olhares de Nicole à procura do tempo vivido por sua personagem, técnicas das artes cênicas muitíssimo bem empregadas. Ela é sedutora como Alice e desenha uma lésbica com graciosidade, bem diferente dos esteriótipos criados pela sociedade.

A narrativa conta com a história dessa vivência e relação, com ricos detalhes, que explicitam um aprofundamento dramatúrgico bem executado, num mergulho profundo realizado com a ajuda de Gabriela Longman como consultora histórica.

O nome do espetáculo é bem empregado, Alice tinha várias aptidões e uma delas era cozinhar.

Alice era de uma grandeza acanhada, como narra sua história, e isso é levado ao palco. Ela escreveu o livro “The Alice B. Toklas Cookbook”, com memórias e receitas apreciáveis, inclusive uma, cujo ingrediente era a tal Cannabis Sativa, ou seja, a maconha, bem atravessada na narrativa cênica de Nicole.

Quanta liberdade, senhores leitores! Longe de apologias, mas inegavelmente a vida com mais liberdade e sabor.

Alice era também secretária de Gertrude, o que fica bem evidenciado por meio da solista no palco, tudo muito bem colocado. O dia a dia delas em um século tão distante, tudo tão contemplativo, que o espetáculo provoca análises.

As músicas, que acolhem algumas cenas, são bem escolhidas, remetem bem à época vivida por elas. O cenário simplório, mas útil. O charme destacado pelo cenógrafo acompanha o Cubismo, movimento que invadiu a Europa, também defendido e admirado por Gertrude.

O casal abriu espaço para as formas geométricas e linhas retas em seu apartamento e também para o mundo.

Gertrude era devota do pintor Cezanne, que contribuiu muito para o Cubismo, embora Picasso tenha sido o maior representante do estilo.

O figurino sóbrio e elegante dá ao audiovisual a estética de um espetáculo, que carrega a biografia de uma mulher reservada, sempre por trás dos bastidores. Os sapatos retrôs (Flapper) e a indumentária bem marcada, traçam com perfeição o estilo da década de 20, que acabara com o uso do espartilho a pouquíssimo tempo. O cabelo ondulado também é assertivo, mostra bem o estilo adotado naquele momento. A ondulação Marcel, boa caracterização.

E por ser uma dramaturgia dinâmica, Alice conversa com os espectadores abertamente. O que os leva a conhecer sua outra faceta, a de cozinheira ficcional.

“Muito foi escrito sobre a Alice. Mas de tudo o que foi escrito o que mais consideramos, foram seus diários e cartas. A peça é uma colcha de retalhos de muitas possíveis Alices, considerando que ela ficou ‘famosa’ por conta da autobiografia escrita por Gertrude, ou seja, mais uma Alice inventada.” (Palavras de Nicole Codery)

Essas revelações da personalidade de Alice foram muito bem-vindas na dramaturgia, deram novas perspectivas das vidas vividas pela protagonista, outras projeções, sendo essas verdadeiras, ou fictícias.

Gertrude e Alice são ícones para o mundo das artes. Um amor para vida toda, foram enterradas, lado a lado, em um cemitério em Paris.

Essa história merecia ser reverberada por artistas brasileiros e de todo mundo, assim como foi por Woody Allen, em “Meia Noite em Paris”, onde seu personagem encontra os intelectuais de 1920, entre eles, Gertrude!

Assistam ao espetáculo, mãos arteiras souberam conduzi-lo com perspicácia, exatamente por isso, a obra atravessa o tempo com sua beleza genuína e provocativa, e contribui com a aceleração do processo evolutivo dos seres humanos e o fim da mediocridade homofóbica!

ALICE, RETRATO DE MULHER QUE COZINHA AO FUNDO

On-line e gratuito

Vencedora do Prêmio Qualicorp

Duração 60 minutos

Classificação 14 anos

Disponível por tempo indeterminado.

Assista:  https://youtu.be/eslpP-7L43g

FICHA TÉCNICA

Dramaturgia: Marina Corazza

Direção: Malú Bazán

Atriz: Nicole Cordery

Cenários e figurinos: Anne Cerutti

Iluminação: Nelson Ferreira

Trilha sonora: Rui Barossi e Pedro Canales

Apoio vocal: Lucia Gayotto

Assessoria de imprensa: Adriana Balsanelli