Tudo pelo sorriso

Outro dia li um criacionista dizendo que os dentes são a maior prova do Design Inteligente (para quem não conhece, tese que tenta dar um ar mais arrumadinho ao criacionismo). São individuais pois, se um estragar, não estraga todos. Bacana. Mas se o designer fosse de fato inteligente não seria mais simples produzir dentes que não estragassem? Ou, ao menos, que não doessem?

Dentes doem. Bastante. Quando a dor é aguda, não dá para dormir. Quando é suave, idem. Quando lateja, também. Quando passa, ficamos com medo que volte. Insônias dentais.

Aí criamos coragem e vamos ao dentista. Nunca os entendi. Hoje usam luvas, mas antigamente ficavam com a mão cheia de baba e sangue, voluntariamente. Passam o dia ouvindo aquele zumbido agudo e irritante, e sabem que são esquecidos assim que a dor passa, não produzem amor verdadeiro. Seus relacionamentos são fugazes, movidos a interesse. E nunca têm boas notícias: aquela dorzinha podia até não ser nada, mas eles acham um tártaro ou uma gengivite inesperados. E gostam disso. Nos comunicam com prazer, com aquela entonação de “eu sabia!”! E, cruéis, insistem naquela fantasia de passar fio dental todos os dias. Eles sabem que vamos mentir, mas querem ouvir, mesmo sabendo que estamos mentindo. Querem palavras doces, não necessariamente verdadeiras, amantes iludidos que são. Mentiras sinceras lhes interessam!

Há um ritual. Sala de espera, com exemplares de revistas médicas e Caras de séculos passados. Folheamos, sem conseguir ler o que está diante de nossos olhos, por conta do barulho lá de dentro. O ouvido se espreme, tentando distinguir algum gemido, mais ainda se for um profissional com quem nunca nos consultamos. Os barulhos se encerram, nossa vez está chegando. A revista está amassada nos cantos, contraímos as mãos sem perceber. A porta se abre, e a assistente, com um sorriso sem jaça, se despede do cliente anterior. O examinamos cuidadosamente, em busca de sinais exteriores de tortura. Aparentemente, nenhum. Ele caminha altivo, passos firmes: sobreviveu. A assistente, com alegria cruel, nos sorri e nos convida a entrar.

O odontologista não está na sala. Está escondido alhures, para uma entrada mais triunfal. A moça risonha nos amarra um babador ao pescoço após sentarmos. Achamos aquilo insuficiente. Mas, covardes, nos calamos. O dentista entra.

Nos cumprimenta, feliz. Dentistas nunca têm problemas, nunca estão deprimidos (apesar de sua profissão ter as taxas mais altas de suicídio. Talvez pelo amor falso que mencionei), sempre estão risonhos e limpinhos. Nos cumprimentam, e perguntam qual nosso problema. Perguntam já com o espelho em nossa boca:
-É aêe en e na es o i o!

E eles entendem! São como balconistas de farmácia lendo receitas, decifram tudo. Cutucam, cutucam, e resolvem radiografar. Encostam aquele cone na nossa bochecha e saem correndo, nos deixando naquele holocausto nuclear sozinhos. Revelam, e claro: canal. Com um prazer imenso, preparam os ganchos e espetos, nos deixando de olhos arregalados, perdidos em nossos pensamentos. Todos fúnebres.

Os dentistas de hoje nos colocam deitados, ficamos na diagonal, com a cabeça abaixo da linha do mar. É naturalmente incômodo, mas quando passa o maldito motorzinho, aquilo solta litros de água e o maldito sugador, que está sempre ocupado sugando nossa bochecha, não dá conta. Resultado: afogamento. Semana retrasada eu passei por isso, vi toda minha vida passar diante de meus olhos – e não gostei do que vi. Mas isso é outra história.

Bem, a essa altura estamos anestesiados, mas sabemos que quando o motorzinho chegar no ápice, vai doer. Ficamos retesados, aguardando. Saímos do consultório com dores pelo corpo, de tanto contrairmos. Mas estamos lá, babando, enquanto o motorzinho cumpre com seu hediondo mister. Vai nos recônditos de nossa boca, reduz nosso dente a um iceberg fino. E com um buraco gigantesco. Era canal, virou um poço artesiano.

Satisfeito, nosso profissional prepara uma massinha de cheiro horroroso e ardido. Acabou. Fazemos a pergunta obrigatória:
-Pode morder em cima?
E a resposta sempre idêntica:
-Claro, mas com cuidado. É provisório.
Aí saímos, com aquela expressão de superioridade dos vencedores, olhando o cliente seguinte nos olhos. Fomos ao inferno e voltamos.

De noite, dormindo, engolimos o provisório.