Toda beleza de Clarice Lispector no Teatro

“O Canto de Macabéa” esbanja beleza em todos os quesitos e fica difícil para um crítico saber por onde começar. O espetáculo é idealizado por Andrea Alves, da produtora Sarau, que de costume apresenta espetáculos premiadíssimos e verdadeiros com temáticas relevantes à sociedade. Elza, Auê, Macunaíma, entre outras preciosidades cênicas, e para chancelar ainda mais sua grandeza no mercado teatral, Andrea traz aos palcos a bela Macabéa de Clarice Lispector, que como ninguém, assumiu o modernismo ao contar a história de uma nordestina saída de Alagoas, que chega ao Rio de Janeiro para buscar novos rumos. E assim começa essa obra-prima. Clarice lembrou de sua história quando chegou ao Nordeste e para concluir seu trabalho, foi à tradicional feira nordestina, localizada no bairro de São Cristóvão, na cidade do Rio de Janeiro. A feira é o mais importante polo da cultura do Nordeste brasileiro na cidade. E entre o narrador e a nordestina, a literatura segue seu ritmo, conquistando até hoje os jovens leitores.

A ideia de trazer o consagrado texto de Clarisse Lispector para o teatro foi divina, mas somada ao profissionalismo dos fazedores de cultura das artes cênicas, a potência da obra se intensifica ainda mais, e é exatamente isso que acontece neste trabalho. Impossível não se apaixonar por Macabéa, a personagem resiliente e também inocente criada com legitimidade pela autora, ainda mais quando representada com perfeição pela atriz Laila Garin. Impossível não alimentar a alma e se deixar atravessar pela força dessa personagem. De certo Clarice também iria vibrar a alma se assistisse à atriz dar vida a sua humilde datilógrafa.

Laila Garin está perfeita, não existiria outra atriz para assumir a poesia de Macabéa com tanta graça e encantamento. Os movimentos de Laila dão aos espectadores a certeza de que ali no palco diante deles tem uma nordestina, bem lá do sertão mesmo. Com uma postura curvada, de quem carrega o peso do mundo nas costas com a humildade e a simplicidade da personagem. Laila, quando assume a infância de Macabéa, traz ao palco movimentos incrivelmente fiéis aos de uma criança, isso deixa a todos que entendem de artes cênicas boquiabertos! Sua voz também está muito bem postada, uma Macabéa de cantar potente.

Os papéis assumidos por Laila são exigentes, mas a estrela brilha. Em uma das cenas, as atrizes Laila e Claudia Ventura estão datilografando e com ajuda da banda, a cena fica precisa, sem arranhões.

Não há como sair do espetáculo sem amar Clarice Lispector, Macabéa e Laila Garin. Seria covardia apontar um desvio na concepção dessa obra tão categórica. Que recebam todos os prêmios!

Na verdade, aqueles que entendem bem de Clarice Lispector, como entendia Cazuza em Bete Balanço, parecem abençoados. Cazuza foi lá no âmago quando disse: “não ligue para essas caras tristes, fingindo que a gente não existe”, fantástico quando um artista constrói seu personagem lhe dá vida por intermédio de suas palavras e suspiros.

As músicas de Chico César deixam a plateia extasiada. Quanta beleza em forma de composição musical. Chico é o poeta erudito que o Brasil precisa, tem alma, fé, vida, sapiência e tudo mais que o ser humano precisa. Um artista visceral, que consegue alimentar a alma de quem o escuta, multiplicador de emoções. E sem brincadeira, o artista politizado entende mais de Macabéa do que se imagina, paraibano, também conhece bem desse êxodo rural descrito por Clarice, da importância dos programas de incentivos na agricultura, da solidariedade e dos programas sociais, que podem mudar a história e a vida de tantos nordestinos. Quando essa ajuda chega às carentes crianças do Sertão, que paupérrimas fazem lembrar a miséria e os esfomeados da Etiópia, por caminhões e caminhões de água enviados para minimizar a seca, rega a esperança de todo um povo.

A banda ao vivo, muito bem ensaiada, tem um andamento musical variado, momentos mais lentos outros mais intensos, em um trabalho executado com maestria pelos músicos.

O cenário e o figurino estão de mãos dadas, não há cores que se sobressaiam, não há cores vibrantes, apenas tons neutros, tudo muito contido dá a sensação da aridez do Sertão. Apenas quando o espetáculo chega em seus ápices o vermelho, ou preto, aparecem. Não descodificando a simplicidade da própria Macabéa, tudo gira em torno da personagem e sua origem. Sua pobreza, seu quarto chinfrim, valorizado por ela mesma, uma verdadeira lição de vida! Longe de ser comodismo, se valoriza o que tem.

Fora da narrativa vive-se um mundo de consumo desenfreado, onde o ser humano cada dia mais é engolido pelo desejo descontrolado de ter mais e mais, numa desmedida desconstrução de valores, num crescente desinteresse e na falta de empatia com a vida do próximo, que essa reflexão se faz forte nas vertentes desse espetáculo. Quando a atriz fala a respeito da morte do outro, independentemente da causa, até onde isso mexe com cada um? Até onde se tem o direito de frustrar os sonhos alheios? Isso também se manifesta no espetáculo, quando Macabéa quer ser Moroe!

A iluminação também merece destaque, muitíssimo bem posicionada, dá ao público boa visibilidade dos artistas no palco e valoriza o cenário cru e inteligente.

A direção tem um olhar de lince, enxerga o que ninguém vê, assim entrega ao espectador tudo muito bem lapidado. No espetáculo, tudo no seu devido lugar, tudo funciona com perfeição, com exatidão. A mesa cai e Macabéa vai embora, tudo bem sincronizado. Não existem espaços vazios e olha que palco do Teatro SESI não é pequeno, é consideravelmente maior que muitos teatros da cidade. Mas, os artistas estão em seus lugares mesmo quando não estão atuando em primeiro plano, é um trabalho coletivo, de cooperação, orquestrado por um diretor que sangra até ser, merecidamente, ovacionado, depois do último ato. Obrigada André Paes Leme por trazer também os textos do livro com tanta sobriedade!

Vale mencionar Renato Luciano, que também integra o elenco, Renato e Laila no palco exalam uma sensualidade, pouco observada nas artes cênicas, mesmo quando os pés da atriz remetem aos chifres do touro, do sonho de ser toureiro do personagem Olímpio. Renato está diferente, parece ter mergulhado em um desafio pessoal, porque nem seus fãs o reconhecem de primeira. Excelente entrega! Quando contracena com Claudia Ventura, amiga de Macabéa do trabalho, ocupa o palco mais uma vez e faz a plateia delirar!

Claudia é forte e atua com mais de uma personagem, três ao todo, e todas excelentes. Ela é mais do que se espera de uma coadjuvante. Que maravilha!

E quanto ao espetáculo, que possa seguir comovendo as almas e levantando relevantes questões humanitárias, para aguçar a maturidade do público e fazer apreciar o que realmente tem valor. Que esse brilhante elenco continue privilegiando os espectadores com essa obra magnânima, para que a simplicidade de Macabéa e seu amor pela vida, somados ao olhar sensível de Clarice Lispector, possam tirar da invisibilidade, o outro. Que essa obra ajude a nutrir de generosidade e empatia os corações. Essa obra merece filas a perder de vista…

Parabéns ao Sesi, e também ao coordenador Alessandro, que como um guardião, recebe o público na frente do portal mágico do teatro.

 

FICHA TÉCNICA

Obra de Clarice Lispector

Adaptação e Direção: André Paes Leme

Idealização e Direção de Produção: Andréa Alves

Elenco: Claudia Ventura, Laila Garin e Cláudio Gabriel

Música e Canção Original: Chico César

Direção Musical e arranjos: Marcelo Caldi

Músicos: Fábio Luna, Pedro Aune e Pedro Franco

Diretor Assistente: Anderson Aragón

Figurinos: Kika Lopes

Cenário: André Cortez

Iluminação: Renato Machado

Design de som: Gabriel D’Angelo

Preparação Corporal: Toni Rodrigues

Assistente de figurino: Sassá Magalhães

Assistente de cenografia: Tuca Benvenutti

Assistente de preparação Corporal: Monique Ottati

Realização: Sarau Agência de Cultura Brasileira e Ágapa Criação e Produção Cultural

A HORA DA ESTRELA OU O CANTO DE MACABÉA

Curta temporada até 27/3

Teatro Firjan SESI – Centro

Avenida Graça Aranha, 1, Rio de Janeiro

Ingressos: R$ 40 (inteira) e R$ 20 (meia)

Classificação 16 anos

Duração: 120 minutos

Gênero Musical

Quinta e Sexta, às 19h, Sábado e Domingo, às 18h

Vendas pela plataforma Sympla: https://bileto.sympla.com.br/event/71662/d/127603

Foto divulgação: Daniel Barboza