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Eu não gosto de mudanças. Eu ODEIO mudanças. Mudanças são ruins.
Acordo tarde. Depois do meio dia. Quando acordo cedo, fico incomodado pelo fato d’o Sol estar do lado errado.
Morei na mesma rua por mais de 30 anos. Lá pelos 20, alguém teve a audácia de mudar a mão dela. E não me avisaram. Um belo dia acordei, por acaso cedo e, ao sair de casa, tanto o sol quanto o tráfego estavam do lado errado. Achei que pudesse ser cedo demais, a atração solar poderia ter invertido os carros, algo assim, mas não. De forma solerte mexeram no trânsito. Atravessar a rua não seria mais a mesma coisa — ainda que voltasse ao sentido original, pois seria uma nova mudança! Eu saía de casa, já desanimado, e perdia um longo tempo me lembrando para qual lado deveria olhar. Um carro na contramão deixou todo o meu sistema límbico abalado. Passei a olhar para ambos os lados, uma coisa inaceitável.
Minha rua era cortada por uma travessa. Pois um dia, algum gênio do mal resolveu que de cada lado dessa viela viriam os carros. Minha pequena e pacata rua teria DUAS mãos, ambas desembocando na outrora tranquila ruazinha. Ali comecei a tomar ansiolíticos. Pesados.
Ao longo da vida, sempre um enorme sofrimento. Me separei — olhaí, começando frase com pronome oblíquo, de tanto que me abalo – em dezembro, árvore de natal montada. Lá para maio alguém reclamou da árvore, não entendi o porquê. Se teria que montá-la de novo, para quê desmontá-la? Assim ela ficou lá nos anos seguintes. A neve de algodão foi substituída por uma neve cinza de poeira, muito bonita.
A pizzaria do bairro mudou de nome. O cozinheiro era o mesmo, mas algo havia se perdido ali. Toda mulher reclama de o marido não notar que ela cortou o cabelo. A minha temia que eu notasse. A embalagem do sabão em pó mudou, outra catástrofe. Mundo bom é mundo imutável. Ad aeternum.
Semana passada os diretores deste jornal — que são casados — me convidaram para uma visita. Aceitei, a contragosto. Sentei-me na cadeira de sempre, e ela me ofereceu:
— Aceita um chocolatinho?
— Obrigado.
Desconfiei. Ela sorria nervosamente.
— Aceita um licor?
Não bebo. Ela notou a gafe.
— Um refrigerante?
— Aceito.
E vieram, em sequência, vários dos meus aperitivos prediletos; seu marido me ofereceu uma massagem nos pés, ela cantarolava uma canção de ninar. Comecei a desconfiar. Estavam me preparando para alguma coisa.
— Ah, Ricardo, íamos esquecendo.
Meu coração falhou duas batidas.
— Temos uma coisa pra te contar.
A boca secou, as mãos começaram a tremer. Não gosto quando me contam coisas.
— Sabe o Portal?
— Sim, claro que sei, escrevo nele há mais de 5 anos, minha coluna sai sempre no mesmo local, o jornal sai sempre dia primeiro, adoro essa confiabilidade: TODO dia primeiro eu vou na garagem de vocês e pego um exemplar novo e quentinho, vou para casa e almoço lendo meus coleguinhas.
— Pois é…
— POIS É O QUÊ????????
— Calma, não se altere…
— O que aconteceu?
— Vamos a uma reuniãozinha agora conversar sobre isso? Vão mudar umas pequenas coisinhas…
— Mudanças?
— Coisa pouca, e tudo muito positivo.
— NÃO EXISTEM MUDANÇAS POSITIVAS!
— Calma, o jornal vai continuar igualzinho.
— Ah…
— Só que…
— SÓ QUE O QUÊ??????
— Vai ser totalmente digital.
— Não.
— Vai, sim. Todo online!
— Não vai, não vai e não vai!
— Já é…
— Eu quero meu jornal de papel!
— É mais ecológico, não derrubamos árvores para fazê-lo!
— É tudo replantio!
— Sim, mas são vidas poupadas!
— E MINHA vida? Quero meu jornalzinho de papel!
— Mas pense: você gostava quando o jornal ficava velho e usavam para recolher cocô de cachorro? Teu texto usado para isso?
— Bem, não.
— E quando chovia, o texto todo esfrangalhado?
— Não.
— Gente tacando fogo pra fazer fogueirinha?
— Não…
— Pessoas recolhendo dezenas de jornais Portal para fazer brinquedos pornográficos de papel machê?
— De jeito nenhum! Pera, quem fazia isso??????
— Não interessa, o ponto é que isso acabou! Agora teu texto será preservado para toda a eternidade em forma de pixels! Não vai mudar nunca! E cada um dos cronistas terá mais espaço para se expressar! Não é uma mudança, é uma melhora!
— Verdade… Vou poder escrever mais vezes?
— Sim!
— Vou ter mais espaço?
— Sim!
— Todos os dias?
— SIM!
— Então eu mudo!
Ambos se abraçaram e começaram a dançar, enquanto eu absorvia as novidades. Sim, o jornal iria melhorar. Já estava sonhando com os novos tempos! Mas…
— Pera lá! Como vão recolher o cocô do cachorro agora?
Ambos me lançaram um olhar maligno.
Sou um incompreendido.