Tá rindo de que?

Assisti ao “Coringa” sem ter lido nada sobre ele e tentando me manter alheio às polêmicas que suscitou. O meu conhecimento do universo de quadrinhos e da mitologia que envolve os personagens se resume ao básico que todos os que cresceram lendo as HQs e vendo os principais filmes sabem. Gosto dos filmes mais “maduros” e sombrios do Batman, amei “Pantera Negra”, mas não tenho mais a menor paciência para essas franquias de ação incessante tipo Avengers.

Digo isto para que saibam que fui ver o filme sem nenhum tipo de expectativa criada por uma ideia pré-concebida sobre ele, apenas ansioso para ver se todos os inúmeros elogios que ouvi, e o Leão de Ouro no Festival de Veneza, faziam justiça.

Pois bem: fazem sim. Me agrada antes de qualquer coisa o fato de “Coringa” ser um filme adulto, algo tão raro nos blockbusters hollywoodianos de hoje. A estética lembra os filmes autorais da Nova Hollywood dos anos 70. O roteiro não está preso aos ensinamentos de manuais, sem grandes reviravoltas nem muita ação. A direção permite pausas e momentos poéticos que soam como joias raras no entretenimento popular contemporâneo.

O Coringa que eu conhecia era aquele um tanto unidimensional, embora rendesse boas atuações de seus intérpretes, nos filmes do Batman. Hoje eu conheci um ser humano, em toda sua complexidade.

O tema principal de “Coringa” é o (sor)riso. Todo o filme se constrói em torno da dualidade e da complexidade que envolve o gesto de (sor)rir e o sentimento de felicidade. Ele ri quando quer chorar, ele sorri chorando. É um dos personagens mais tristes que já vi no cinema, mas sua mãe o chama de Feliz. Uma das músicas-tema do filme é a tristíssima “Smile”, de Charles Chaplin, de melodia suave e assobiável. O Coringa de Todd Phillips e do magistral Joaquin Phoenix quer entreter crianças doentes em hospitais e o público de stand ups e talk shows, mas o máximo que ele consegue é que riam de sua desgraça e de sua melancolia. A contradição que envolve o personagem é a mesma que envolve o filme: que tipo de entretenimento “Coringa” oferece?

Não há lugar, naquela Gotham City hipócrita, para o que o Coringa deseja ser. Não há lugar, no mundo real de hoje, para o que o Coringa deseja ser. Ele é um símbolo, um estandarte a ser brandido no momento em que o vulcão social sai de sua letargia e entra em erupção. O Coringa de Todd Phillips e Joaquin Phoenix é o anti-herói que Hollywood fabrica num dos passos mais ousados de sua história. É por isso que, por mais que o drama intimista já fosse suficiente para transformá-lo em um dos melhores filmes do ano, é impossível deixar de enxergá-lo como um manifesto político de imensurável impacto.

É muito estranha a sensação, depois da sessão, de sair às ruas do Rio de Janeiro/Brasil e ver a vida na Gotham real de witzels, crivellas e bolsonaros seguir seu fluxo letárgico, como se o Coringa nunca tivesse existido. Aguardemos.

Foto Divulgação

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