Petite-mort

Depois de sete meses de quarentena, voltei a tocar ao vivo, na minha roda de samba. As velhas letras, que um dia cantei no automático e que, naquele dia, por pouco não me fugiram, me pareciam novas de novo. Ganharam o frescor de uma música que acabara de aprender… renovar, muitas vezes, é, só, recomeçar.

Olhando a nossa volta, podemos aprender continuamente. O simples fato de estarmos presentes no planeta, já pode nos ensinar. A lua nos fez pensar num círculo? Talvez… ou — quem sabe? — tenha sido a íris de nossas mães. Dali, pensamos na roda, nos astros, nas órbitas, nos átomos…

Pensamos nos dias, meses e anos, nas estações de um ano, no Pi, no Fi, na bola de gude, ou de futebol. Todo mundo pensa nisso. Você não é o único esquisito… por meio dessas analogias vamos entendendo o universo ao nosso redor, o macro e o microcosmos. Pensar, nos fez perceber os ciclos e nos levou a uma maneira de compreender a vida.

Ela própria, nos parece um ciclo. Nascer, crescer, reproduzir, envelhecer e morrer. Entre esses estágios podemos, gratuitamente, respirar, ver, ouvir, tocar, pensar, sentir gosto e cheiro, falar, ter sensações e sentimentos, que são comuns a todos. Assim como, é comum, querer expressar e passar adiante nossos medos, anseios, angústias, alegrias, dúvidas e “certezas”.

Ao mesmo tempo, precisamos imitar tudo que já deu certo. Aquela ideia de pegar uma pele de animal e colocar nos pés ou nos ombros, foi boa. Aquela outra, de desviar a água do rio, também. Sem o acúmulo de experiências de nossos antepassados, teríamos que reinventar tudo, todo dia. Estaríamos andando sem sair do lugar.

Chegamos aos números, que nos ajudam a fazer comparações. À moeda, que é uma tentativa de relacionar valores de coisas muito diferentes. A ideia é boa, mas permite especulação e exploração. Ainda vamos chegar lá… A evolução é lenta, porém, o caminho é só de ida. Mesmo que o melhor para o planeta seja nosso fim.

Podemos pensar no fim como término ou como finalidade. Pode-se estudar música com o objetivo de ser músico, ou de entender a vida. Já que nela se percebe ciclos análogos a tudo o que existe. Muito se aprende também, sobre acabar, nos dois sentidos: do acabamento e do final.

Como disse Da Vinci: “A simplicidade é o último grau da sofisticação”. E a natureza é nosso maior exemplo. Muitas vezes, o acabamento é, apenas, enganar os sentidos de quem vê, não com o objetivo de ludibriar, mas de satisfazer necessidades. Uma superfície espelhada não existe, mas passa aos nossos sentidos a sensação de que é real. No entanto, se analisada ao microscópio, percebe-se que ainda existe rugosidade ali, porém, tornou-se intangível a nossa percepção.

Outro exemplo disso, que já, até, comentei outras vezes aqui, é o filtro de ruído, que, ao invés de cortar uma determinada nota que sobra, a amplifica, até que atinja uma frequência acima de 20.000Hz, tornando-se inaudível para nós, mas não para um cão… Mais uma vez, a solução não foi consertar o mundo, mas alterá-lo o suficiente para não nos incomodar.

Conhecer o parâmetro humano fez com que não se fosse preciso ir tão fundo, de uma só vez, nos permitindo avançar gradualmente, usando nossa cognição como referência. Em outros casos, como o da física, por exemplo, acabamos compreendendo que fórmulas, que funcionam bem dentro do planeta, poderiam não se aplicar ao espaço.

O final, assim como na arte, não se resume ao “The end”, já que finais acontecem amiúde e sem restrições. Em nossa vida existem vários: ciclos que terminam e iniciam, pessoas que vem e que vão, personagens que morrem e que surgem…. Fatos, aniversários, formaturas, trabalhos e sempre — relacionamentos. Como disse Nelson Mota, em sua letra para a melodia de Lulu Santos: “A vida vem em ondas como o mar — Num indo e vindo infinito.”

Temos que viver sem temer o final. Sabendo que ele existe e que pode acontecer em qualquer lugar e momento. Temos que estar preparados. Ao contrário da arte, onde se pode escolher o final num sorteio e prepará-lo ao longo do caminho, podendo torná-lo apoteótico, na vida, as escolhas de como iremos percorrer o caminho, torna o final melhor, ou pior.

Na arte, o final é o grande momento, o desfecho. É o que pode deixar o público frustrado, ou eufórico. Alguns artistas começam a obra pelo final. Sejam músicas, peças, livros… tudo se desenvolve tendo como objetivo o fim. Como um orgasmo seguido daquele torpor, que em francês, é chamado de “petite-mort”.

Como na letra de “Planeta Sonho”, de Marcio Borges: “E lá no fim daquele mar, a minha estrela vai se apagar — Como brilhou! Fogo solto no caos! … E lá no fim daquele azul, os meus acordes vão terminar — Não haverá outro som pelo ar!”

Existem pequenos começos e finais no decorrer de uma peça. As pausas… A dinâmica…. Situações que começam depois do início e se concluem antes do fim, e que vão nos tirando, ou enchendo de esperança. E, paradoxalmente, o que mais se espera é um final inesperado.

Mas, existe também o final óbvio, com um desenvolvimento surpreendente. Quem nunca leu um livro sobre alguma figura histórica, cuja morte já conhecíamos, entretanto, o que mais nos deixa boquiabertos é a maneira como conduziu sua vida? Como encarou seus problemas ou desenvolveu habilidades, para transformar suas fraquezas em força. Como teve tanta coragem, para fazer o que fez?

Claro que a maneira como somos levados até o final, a forma de se contar a história muda bastante nossa perspectiva e experiência. Inclusive, cada contador, carrega mais nas tintas, que prefere e sempre traz seu ponto de vista somado àquilo que conta.

Poderíamos ter os dois finais? Chegar ao óbvio e, ainda assim, nos surpreendermos? Como já disse, nossa única certeza são as dúvidas, por isso, é sempre saudável duvidar. Não se nutrir de certezas e, afastar a prepotência que vem delas.

Em “Canto para minha morte”, Rauzito diz o seguinte: “Vou te encontrar vestida de cetim, pois, em qualquer lugar, esperas só por mim. E, no teu beijo, provar o gosto estranho, que eu quero e não desejo, mas tenho que encontrar…Vem! Mas, demore a chegar. Eu te detesto e amo, Morte, Morte, Morte que, talvez, seja o segredo dessa vida.”

Até a próxima!