O ‘Eu feminino’ em outros corpos

Não é de hoje que venho prestando bastante atenção na feminilidade humana. Sim, humana, digo isso porque cada vez mais me convenço de que todos somos um extrato da mistura de poções femininas e masculinas. O que nos “desprograma” são as convenções sociais, os dogmas, os preconceitos enraizados em uma sociedade qualquer acerca de algo que as classes dominantes julgaram ser indevido. Dentro dessa premissa, suponho que os homens, por exemplo, poderiam ser bem mais sensíveis se não fossem tolhidos desde a infância em suas manifestações ao externar sua emoção e sensibilidade.

No que resultaria se tivéssemos trilhado caminhos diferentes na criação dos meninos? Teríamos um quantitativo inferior de feminicídios? Menos posturas machistas? Casais mais completos pela natural empatia que isso promoveria entre os pares? E se as meninas fossem educadas com a consciência do seu empoderamento, do quanto podem ser livres e autênticas?  Teriam um melhor aproveitamento de sua sexualidade? Brigariam com mais afinco pelas igualdades laborais? Sentir-se-iam mais livres para tomar iniciativas “tidas como sendo do gênero masculino”?  Seríamos, portanto, todos mais felizes? Talvez nunca tenhamos essas respostas, no entanto, existe tanto de um lado como de outro, correntes de luta em prol de cada um dos tópicos citados.

Todavia o processo de empatia me parece uma condição imprescindível para aceitarmos o próximo. E nessa busca me interessei pelos corpos que biologicamente pertencem a determinado gênero e mentalmente sentem-se pertencentes a outro. Como será sentir-se feminina dentro de um corpo masculino, ou vice-versa? Após algumas leituras, documentários assistidos, conversas com mulheres e homens “trans”, pude perceber o quanto deve ser difícil viver uma situação como essa. Como se não bastasse o conflito interno decorrente da incoerência entre o corpo e a mente, o preconceito que ronda essas pessoas dificulta ainda mais o enfrentamento da questão. Infelizmente a “formatação social” determina o que é certo ou errado e quase cega as pessoas, impossibilitando-as do exercício empático necessário ao acolhimento ideal e respeito incondicional.

A ignorância pode matar, um exemplo disso é que nessa situação a família, muitas vezes empenhada em “resolver” a questão, força uma adequação por parte da pessoa, que para ela é quase que impossível ser realizada. E pior, as tentativas de adequação, vão minando a essência interna prevalente como se fosse possível matá-la.  E como matar uma essência, que contrariando a forma física, emerge rica em expressividade, farta de aptidões naturais, preferências, identificações e paixões que destoam do corpo que as carregam?

Mas as dificuldades que permeiam o cenário não acabam quando o indivíduo se reconhece “trans” ou opta pela transição. A luta é extensa, e há que se desbravar novas matas, no âmbito familiar, acadêmico, laboral, social, como se recorrentemente o indivíduo precisasse reafirmar para os outros quem ele é. Tão mais simples seria se nos dispuséssemos apenas a nos colocar no lugar do outro, a respeitar o lugar que o outro deseja ocupar. Sem interferências, sem questionamentos, sem julgamentos e apenas com empatia. Fica a dica: sem fanatismos religiosos da máxima deixada para nós, que já nos alertava ser o amor o maior e mais sublime dos sentimentos. Amemos, pois, os outros como a nós mesmos!