Há de se cuidar do broto, já dizia o compositor

“Quero falar de uma coisa. Adivinha onde ela anda? Deve estar dentro do peito ou caminha pelo ar… Pode estar aqui do lado, bem mais perto que pensamos, a folha da juventude é o nome certo desse amor…”

Milton Nascimento é um gênio. Para mim, o maior de todos. E não dá para explicar o porquê falando de música, de técnica, nem de nada que seja concreto. Pois, em sua arte, o abstrato é, justamente, o que mais nos impacta.

Nas entrelinhas, acontece o milagre dos peixes, a multiplicação. Seja por meio de imagens, ou de sentimentos, a seiva viva que jaz dentro dela, também transborda nos arrebatando e nos deixando em êxtase. Seus desdobramentos nos levam a lugares maravilhosos, dentro de nós.

As escolhas mais simples e inusitadas produzem efeitos incríveis. Seus arranjos dão nova roupagem à tradição e sua interpretação recheia as canções de amor, fé, esperança e de luz. Elis Regina disse que se Deus falasse, seria com a voz do Bituca.

Não são necessárias explicações, sua música fala por si. Aliás, apesar de não ser lembrado como letrista, nesta música, “Coração de estudante”, de Wagner Tiso, a letra é dele. Nela, uma aula de como se deve utilizar a subjetividade melódica para dar profundidade à letra. E, então, essa “coisa”, sobre a qual ele quer falar, nos alcança e nos impele a voar.

“…Já podaram seus momentos, desviaram seu destino, seu sorriso de menino, quantas vezes se escondeu. Mas renova-se a esperança, nova aurora a cada dia e há que se cuidar do broto, pra que a vida nos dê flor, flor e fruto…”

Temos que cuidar das próximas gerações, perceber o legado que está sendo herdado. Aprender a diferença entre cultura e entretenimento, saber que as duas devem conviver, sem que a segunda esmague a primeira. Assim como, percebemos na natureza, que o tesouro está na diversidade.

Aproveitando a recente passagem do dia da consciência negra, homenageio este grande artista, que representa de forma tão íntegra e completa, o que é a herança africana. Que não se resume a riqueza rítmica, como alguns tentam impor, afinal, a cultura negra nos legou melodias, harmonias e letras riquíssimas. Esse assunto vale, até, uma coluna só para ele.

É uma pena que a ideia de culto ao ritmo, ao que balança o corpo, não represente, de fato, uma riqueza rítmica, mas, sim, uma enorme pobreza. Diversos gêneros brasileiros tiveram sua identidade hackeada e substituída por música malfeita e de mau gosto, com letras toscas, que entretêm e estimulam quem quer beber e descer até o chão.

Não tenho nada contra a existência dessas músicas, tampouco, de músicos que vivam desse mercado. Mas não sou surdo, nem cego, e vejo o quanto copiam e imitam, descaradamente, algo que fez sucesso. Ainda que seja por aqueles cinco minutos de fama. Então, me pergunto: será que todo o planeta só gosta disso?

Fazer algo em série, querendo dizer que é cultura, é a mesma coisa que o “palhaço” dizer que seus sanduíches são gourmet. Ora, a cultura é, justamente, o que há de específico, de singular, de característico em cada povo. Envolve a língua, os hábitos, folclore, costumes, crenças e a própria identidade local, que, sempre vai além dessa soma.

Esse “modus operandi” encerra uma maneira simplista de se chegar às camadas mais humildes da população. E ao confundir simplicidade com banalidade, dão um péssimo exemplo às gerações mais novas. Se, antes, havia acesso a uma cultura verdadeira, que fazia a mente florescer, com o tempo, o que se quer ouvir, por mau hábito, passou a ser falso e de baixo nível.

A frase de Fernando Brant “todo artista tem de ir aonde o povo está” foi distorcida de forma perversa. E, hoje, dá aos incautos, a ideia de que o artista tem que dar ao povo, somente o que o povo quer. Eu discordo. O artista deve devolver ao povo o que aprendeu, somado com a sua perspectiva, seu ponto de vista.

A relação com o público é importantíssima, mas, nunca, unilateral. Ambos dão e recebem, e essa troca é fundamental. Grandes artistas têm uma relação intensa com o público e, naquela entrega, cheia de gratidão e carinho, tanto se atende a pedidos, como se mostra uma nova canção.

Mas, as relações humanas, muitas vezes, se distorcem e mentiras repetidas tornam-se verdades absolutas. Por isso, nem tudo que chega até nós, vem por mérito do artista e sua equipe, mas por campanhas de marketing e “jabás” para emissoras de rádio e televisão. Estendendo-se, inclusive, à internet.

Nela, vemos de tudo. Grandes artistas que ensinam o que é arte, outros que dependem dela para não serem esquecidos… vemos uma grande profusão de talentos e, também, de pessoas sem talento algum, misturadas e vendidas num mesmo balcão.

Cantores de chuveiro que sabem se divulgar, podem ter mais espaço do que artistas que não têm intimidade ou domínio de redes sociais. Enfim, hoje é muito difícil saber o que é verdadeiro, honesto e real.

Na rede, além de grandes artistas disputarem espaço com pequenos, o momento é tão singular, que o público anda regredindo e acreditando em tudo o que passa em sua tela. E, pior, acredita também que, por mágica, algo deixa de acontecer ao se negar. Nega-se a eficácia de vacinas e, até mesmo, se volta a crer que a Terra é plana.

Nega-se a matemática, a ciência e a lógica. E este negacionismo, tem a ver com o desconforto em relação aos rumos que a humanidade tomou e a dificuldade de aceitar as dúvidas. No entanto, esse comportamento acirra os atritos e gera mais mal-estar.

Hoje, até mesmo quem se diz correto, passa boatos para frente, desde que sejam contra seus inimigos, sem perceber, ou se importar de estar agindo da mesma maneira que tanto critica. Na briga de torcida, vale tudo, afinal, é só um jogo…

Nesses tempos sombrios, é preciso despertar a pureza, que ainda habita nosso ser e que trazemos desde a época da inocência. Não porque somos ingênuos, mas porque somos fortes e entendemos que é preciso. Só ela pode acalentar, de novo, nossos sonhos e nos fazer acreditar num amanhã melhor.

“…Coração de estudante, há que se cuidar da vida, há que se cuidar do mundo – toma conta da amizade! Alegria e muitos sonhos espalhados no caminho, verdes, planta e sentimento: folhas, coração, juventude e fé!”

Que possamos regar estes verdes ramos, para que os frutos da boa vontade possam transformar o mundo num lugar melhor. Feliz Natal!

Até a próxima!