Fóssil narrativa da misoginia no mundo

Faltava mesmo Natalia Gonsales aqui nesta coluna. Uma atriz atuante, forte, de peso para o Teatro brasileiro, embora ainda muito jovem, seus personagens são sempre impactantes. E ela, com propriedade, os concebe majestosamente.

O espetáculo “Fóssil” chegou ao Sesc, por intermédio de um audiovisual de qualidade, com uma filmagem bem executada, limpa e bem enquadrada no vídeo, dá realmente prazer em assistir, além do rico conteúdo trazer inúmeras informações. O audiovisual também conta com efeitos especiais, notoriamente bem colocados.

Flávio Tolezani, que também já passou por esta coluna, por sua obra brilhante “In Extremis”, retorna com o mesmo mérito e a mesma capacidade cênica, encanta os expectadores.

Os artistas duelam, com suas corpulentas narrativas, muito bem ensaiadas e não titubeiam em nenhum momento. A dramaturgia de Marina Corazza é de uma capacidade ímpar. Ligar os curdos ao momento atual é de uma expertise singular. As explicações quanto à história das mulheres curdas são lindas.

Uma história que precisa e merece ser reverberada, revisitada, para brandar a bandeira contra todo o machismo que persiste não só no Oriente Médio, mas também na América do Sul e em todo planeta. As mulheres curdas — de etnia resistente à ultrapassada ideologia muçulmana ainda praticada por alguns grupos e países — são corajosas, pois vivem em regiões onde sua invisibilidade é imposta por uma cultura esmagadora. São verdadeiros exemplos, que incentivam a liberdade para qualquer viés ideológico de amplitude feminina.

“A montagem se passa na sala de Luiz Henrique, diretor da maior empresa de gás liquefeito de petróleo. Anna, uma jovem cineasta, vai ao seu encontro em busca de recursos para a realização de um filme sobre a revolução de Rojava, no norte da Síria. Ela narra o roteiro do filme e sua importância político-social, cruzando histórias de mulheres curdas torturadas da Síria com memórias de mulheres na ditadura militar brasileira de 1964. Durante o encontro, relações dúbias de opressão vão se construindo entre os dois. ”

Essa sinopse já aponta para um espetáculo maduro e esclarecedor, para cabeças pensantes, ou curiosas, claro! As narrativas levam a plateia à realidade atual. É de se perder entre a memória e o presente político vivido, principalmente, quando há mulheres envolvidas no contexto.

É mencionado o abominável Estado Islâmico e a Revolução de Rojava. Pasmem! Mas houve uma revolução feita por mulheres curdas, que corajosamente foram para o front de guerra.

Um texto muitíssimo bem costurado, onde a beleza e a legitimidade do artista estão bem representadas, em determinada parte do texto chega a ser um momento arrebatador. O artista, em sua intimidade e humanidade, reverbera, sangra e grita. A protagonista encarna a personagem de tal modo, que deixa a pele de quem a assiste arrepiada.

A tríplice cênica: ator, texto e público, se encontram com louvor! As indumentárias são perfeitas, das cores aos moldes. São peças que se harmonizam ao conteúdo textual. Leopoldo Pacheco não brinca em serviço. Salve! O lenço, que compõe o figurino, é útil às cenas. Quanta versatilidade e beleza em um objeto de cena. Natalia abusa do pedaço de tecido.

Aline Santini é quem assina o desenho de luz, caprichosamente. Ela deixa claro o que é para ver e ser apreciado. Belo trabalho. Ficha técnica de excelência.

O ator Flávio Tolezani parece ter nascido mesmo para o Teatro, então o que falar dele? O que escrever de um profissional absolutamente entregue à arte? Um artista maturado, sempre assertivo e nada econômico em sua potência teatral.

Natalia Gonsales veste uma farda, vestiu-se de alma e atropelou a todos da plateia. Ela, que é a idealizadora do espetáculo, iniciou sua pesquisa em 2017. E a dramaturga Marina Corazza entendeu o caminho proposto por Natalia e construiu um texto esclarecedor. A atriz transportou-se à Rojava e transportou a todos com ela, que renasceu curda ao encarnar uma daquelas mulheres revolucionárias. Nenhum erro, absolutamente divina. Mansa quando tem que ser mansa, imensa quando tem que ser imensa.

Os movimentos corporais foram bem introduzidos ao corpo da personagem. Uma performance indubitavelmente linda. As expressões faciais e corporais são um bálsamo aos olhos de todos que a assistem, isso deve-se também ao talento da diretora Sandra Corveloni. Mesmo que os artistas estejam certos de seus textos e personagens, o olhar do diretor tem seu significado e importância. Quando o espetáculo parece não ter arranhaduras, em sua totalidade, o mérito também é muito da direção, que unifica todos os profissionais no palco e faz dar certo.

Ao Sesc e sua primorosa curadoria, salva de palmas e agradecimento. Vale muito mencionar que a peça está disponível, no Youtube, também com acessibilidade aos deficientes auditivos.

Quer saber como acabou a história e se a personagem conseguiu o recurso? Assista!

 

FÓSSIL

Teatro On-line e gratuito

Em Casa com o Sesc

Classificação: 12 anos

Assista: https://www.youtube.com/watch?v=6462uYVQ544&t=4138s

https://www.youtube.com/watch?v=6462uYVQ544&t=4138s

FICHA TÉCNICA

Idealização: Natalia Gonsales

Dramaturgia: Marina Corazza

Direção: Sandra Corveloni

Elenco: Natalia Gonsales e Flávio Tolezani

Música original: Marcelo Pellegrini

Desenho de luz: Aline Santini

Figurino: Leopoldo Pacheco

Cenário: Carol Bucek

Videografismo e videomapping: André Grynwask e Pri Argoud (Um Cafofo)

Voz canção curda: Rojda

Produção musical: Surdina

Mãe de Anna: Clara Cury

Assistência de direção: Felipe Samorano

Assistência de luz: Pajeú Oliveira

Operação de luz: Vinicius Andrade

Operação de som: Pedro Ricco

Projecionista: André Grynwask

Locação e captação de som: Radar Som

Assessoria de imprensa: Pombo Correio

Assessoria de Mídias Sociais: Letícia Gonzalez

Fotos de divulgação: Ronaldo Gutierrez e Haroldo Miklos

Fotos do espetáculo: Ronaldo Gutierrez e Matheus José Maria

Registros fotográficos do Curdistão:  Alexandre Auler, Fabio Braga e Virginia Benedetto

Imagens aéreas (drone) de Kobani: Gabriel Chaim

Aulas sobre os conflitos do Oriente Médio: Reginaldo Nasser

Produção: Bem Casado Produções Artísticas e Contorno Produções

Direção de produção: Jessica Rodrigues e Victória Martinez

Produção executiva: Letícia Gonzalez

Assistente de comunicação e projetos: Carolina Henriques.