De quem é a culpa dessa moléstia?

Escadas que levam o público ao êxtase! Assim começa essa obra recheada de perguntas e suspense. Moléstia, substantivo feminino, também descrito como mal, doença, enfermidade, dor, ou abatimento moral. Um texto com diálogos inteligentíssimos, atuais e provocadores.

Poderia ser cinema, não fosse o fato, da teatralidade atravessar o audiovisual e o tempo específico de filmagem para tal consideração.

Sim, para os espectadores, habituados às salas cênicas, é previsível se verem em uma das cadeiras vazias, inteligentemente inseridas ao cenário. Principalmente diante das encarnações tão viscerais dos artistas no palco virtual.

O teatro Gláucio Gil, em Copacabana, referência cultural e artística no Rio de Janeiro, acolheu essa produção. Já passaram pelo seu palco gigantes do Teatro como Tereza Raquel e Eva Todor puderam encenar espetáculos inesquecíveis, como “Navalha na Carne”, com Tônia Carrero, Emiliano Queiroz e Nelson Xavier, “O exercício”, com Glauce Rocha e Rubens de Falco, e “Réveillon”, com Fernanda Montenegro e Sérgio Brito. Vale lembrar de Tônia Carrero censurada lá com “Navalha na Carne”, durante a ditadura.

A curadoria do teatro tem muito bom gosto, essa é mais uma excelente escolha, em anos respeitando a história do teatro brasileiro e a arte. A escolha do diretor pelo espaço, se faz também por gosto pessoal, além de se identificar com o projeto Moléstia. “A estrutura do teatro Gláucio Gil nos possibilita mostrar as engrenagens da cena que reverbera nas relações da trama”, disse o diretor.

E Moléstia escolheu o espaço e, ainda que sem espectador para aplaudir, seguiu o trabalho.

Ciro Sales é um artista completo, potente, que respira teatro. Durante a pandemia não foi difícil encontrá-lo nas telas. Suas obras refletem exatamente as palavras que o descrevem.

E nesse papel, quando dá vida ao personagem Cadu, não diferiu, o fez com veemência, deixando a plateia embriagada de excelente arte cênica.

A narrativa tem uma dinâmica irretocável, flui como um rio, sem parar entre os personagens.
Tudo graças ao dramaturgo Herton Gustavo Gratto e sua atualidade desmedida. Obviamente, entendendo completamente das relações que se constroem e se desconstroem nessa atualidade.

A boa direção de Marcéu Pierrotti é nítida, clara como águas do Creater Lake nos Estados Unidos. O lago que fica em Oregon nasceu de um colapso vulcânico, tal como o olhar de Marcéu. A nitidez da filmagem, a clareza do som e a direção de cada artista.

Espaços bem aproveitados nos enquadramentos “cinematográficos”, já que a linguagem do teatro se unificou, temporariamente às ferramentas utilizadas nas filmagens. E o brinde em cena aos dias que virão já conota algo no ar.

Um casal recebe um amigo. Felipe Dutra encarna o marido da atriz Camila. Um personagem um tanto quanto grotesco e machista. É questionável o motivo que faz a personagem aceitar uma relação tóxica, mas a obra não se cala e tenta fazer entender os fatos de cada ato e aceitação.

Aos amantes do teatro a obra em nada deixa a desejar, é possível admirá-la por aspectos diferenciados. Existem oportunidades visuais, antes não possíveis de serem admiradas de uma poltrona teatral, isso é fato.

Uma trama densa, surpreendente a cada plano de filmagem, golpes de Jiu-jitsu, ou meras desculpas para o afeto entre dois homens? Os duelos entre Ciro Sales e Felipe Dutra são imensos e revigorantes.

A atriz Camila Moreira entra bem em cada take, expressividade latente para cada performance.

Mabel, a mãe de um autista que foi violentado, parece guardar segredos, faz o público se perder e mudar de opinião a cada cena relacionada ao crime.

É preciso falar da atriz Deborah Figueiredo, desde o início se faz imensa.

O som nítido, ouve-se com clareza, a iluminação evidencia expressões faciais bem trabalhadas e é prazeroso assistir o resultado de um trabalho tão simbiótico. Os figurinos estão ligados a trama, todos não matizados. Sobriedade os define. 

A hipocrisia permeada na sociedade faz suscitar obras como essa. Faz lembrar Nelson Rodrigues.
Não se deve ignorar a força da dramaturgia, ou não se deixar seduzir até o fim do audiovisual, em busca de uma resposta.

Contribui com o texto a não poluição sonora das narrativas, todos com suas falas bem pausadas e dicções apropriadas. Respiração precisa.

Hipocrisia, mentiras, violência, machismo, tudo em um texto só. E a maldita religião que cala.
E as verdades que enganam.

Um trabalho primoroso e elegante, o que se espera de um excelente espetáculo. O teatro se faz vigoroso e presente em toda obra, isso é inegável.

Por mais obras assim…

MOLÉSTIA
Temporada até 27/6, às 22h
Ingressos: De R$ 10 a R$ 30
Classificação 14 anos

Para comprar acesse: https://www.sympla.com.br/molestia__1166850

Após a compra do ingresso, ele fica disponível por até 48 horas e pode-se assistir quantas vezes desejar.

FICHA TÉCNICA
Direção: Marcéu Pierrotti
Dramaturgia: Herton Gustavo Gratto
Elenco: Camila Moreira, Ciro Sales, Deborah Figueiredo e Felipe Dutra
Direção de Fotografia: Felipe Neill
Assistência de Direção: Filipe Leon
Assistência de Fotografia: Hugo Lima
Montagem: Fábio Jordão
Trilha Sonora: Daniel Simitan
Direção de produção: Olívia Vivone
Coordenação de produção: Cacau Gondomar
Produtor Executivo: Maurício Baduh
Assistentes de produção: Mônica Varella e Eveline Peixinho
Som Direto: Vilson Almeida
Microfonista:  Antônio DMC
Sonoplasta: Eduardo Keller
Colorista: Pedro Henrique Gonçalves
Chefe de Elétrica: Luis Martins
Assistente de iluminação cênica: Vitor Emanuel
Assessoria de Imprensa: Equipe D – Berê Biachi
Mídias Socias: Thiago Schreiter
Design Gráfico: Ciro Sales
Catering: Anna Laura e Elma Lúcia Antonio
Intérprete de Libras: Jadson Abraão
Realização: Marcéu Pierrotti
Coprodução: Cacau Gondomar CLG Canteiro de ideias e Olivia Vivone
Doppio Produções
Apoio: SESC RIO
Apoio Institucional: FUNARJ e FUNARJ EM CASA
Patrocínio: Lei Aldir Blanc – Secec RJ, Governo do Rio de Janeiro, Secretaria Especial de Cultura e Ministério do Turismo.