Ano novo em mim

Era o dia da virada do ano 2020 para 2021. Os minutos avançavam no relógio da parede da sala. Era quase meia noite e Clara aguardava a virada do ano. Ela sempre se emocionava nas viradas de ano e estava achando estranho, que até agora não tinha batido aquela ansiedade gostosa, aquele frio na barriga, nostalgia e memórias do ano, que estava terminando, e expectativa pelo que estava prestes a irromper. Ela começou a se esforçar para tentar sentir alguma coisa, alguma espécie de sentimento e de sensação parecida com a dos últimos anos.

“Cadê, Clara? Cadê você aqui dentro? Tá dormindo por aí? Tá quase chegando a hora e você ainda não está se emocionando. O que está acontecendo?”

Ela pensava sobre si mesma, estranhando aquela mudez toda. Estava quieta, sem emoção, sem ansiedade dessa vez. Nada borbulhava em seu âmago e nem a fazia sentir empolgação para começar novos projetos e dar continuidade aos antigos. Sua cabeça costumava ser um misto de memórias do ano que estava terminando e excitação pelo novo que viria. Costumava escrever sobre sua evolução pessoal e tudo que havia aprendido de importante e de construtivo, mesmo, e principalmente, nos dias mais difíceis.

Fazia sua própria retrospectiva e realmente o “réveillon” tinha um significado quase místico para ela. Acordar, recordar, renovar e evoluir. Essa era a ordem de pensamentos, que usualmente a permeavam nesses dias. Se sentia excepcionalmente sensível nessa data, e chorava, chorava… Lágrimas de gratidão por mais um ano vivido, por mais tantas experiências e êxitos alcançados, por tantas desconstruções e reconstruções ao longo do caminho, pelos desafios vencidos. Estava diferente, definitivamente! Se sentia pálida, inerte, sem pulsação.

—Clara, faltam 5 minutos! Vem aqui pra fora!

Seus amigos a chamavam para o terraço porque o show de fogos anunciando o ano novo estava quase começando. Ela precisava se levantar e demonstrar um pouco de animação, para não ser desagradável e criar um clima ruim durante a celebração. Colocou um sorriso amarelo no rosto e fingiu alegria quando os primeiros barulhos dos fogos começaram a se fazer ouvir.

Havia sido um ano muito difícil. Uma epidemia de proporções mundiais tomara conta de tudo, de todos. Os dias eram mais longos do que de costume. Para muitos, as janelas eram as únicas aberturas para o mundo exterior. A maior parte da vida estava se passando sob telas. Ilusões frias. Televisão, celular, computadores. Era a maneira de conversar, de matar as saudades, de viajar sem sair do lugar, de se distrair e esquecer um pouco.

As famílias tiveram que se olhar de frente, se encarar mutuamente. A convivência forçada e o confinamento levaram muitos à loucura, à exaustão. Muitos se separaram, se agrediram, se machucaram verbal e fisicamente. Não tinham para onde fugir, para onde correr.  Outros, por sua vez, se reencontraram. Consigo mesmo, ou com terceiros. Reafirmaram o amor, renovaram votos, emolduraram fotos. Puderam parar para se ouvir, se conhecer de fato. A criatividade foi convidada a comparecer às pressas. Os pais deram nó em pingo d’água para trabalhar e cuidar dos filhos e da casa.

Novas brincadeiras precisavam ser criadas, diariamente, para distrair as crianças e fazê-las sorrir. Elas choravam com frequência. Os adultos também.

Muitos se ajudaram, se doaram. Deram o que podiam e o que não podiam dar. “Sabe lá, o que é não ter e ter que ter para dar. Sabe lá”. Doavam seu tempo, remédios, máscaras, dinheiro, oração, meditação, comida, amor. Mantiveram salários e tentaram proteger os seus funcionários. Se preocuparam em não estocar remédios desnecessários. Alguém, de fato, poderia precisar. Alguns foram muito corretos, honestos e tentaram viabilizar o possível para ajudar a conter o caos desenfreado. Enquanto outros roubavam descarados. Acordos, golpes, desvios de verbas para enriquecer materialmente de forma suja e às custas da asfixia coletiva. Alguns simplesmente negaram, fizeram piadas, escarneceram da situação que, a cada dia que passava, mais se enovelava.

Muitos foram corajosos. Saíram diariamente e encararam o vírus de frente. Armados com equipamentos de proteção individual (quando tinham), fé (os que tinham), cristal de proteção ou terço na mão. Cada um ia agarrado em suas crenças para tentar fazer a diferença. Arriscavam suas vidas e a vida de suas famílias, diariamente, sem recuar. Profissionais da saúde salvaram tantos e perderam muitos. Consolavam o inconsolável. Se mantiveram firmes, fortes e inabaláveis mesmo quando as pernas tremiam de agonia quando não tinham mais recursos e o que sobrava era, depois de uma inspiração profunda, olhar para o céu e implorar ajuda. Também precisavam de colo, de consolo e de descanso, mas não havia tempo para isso. Fizeram mesmo a diferença… e como fizeram.

—Clara, tá tudo bem? O que houve?

Clara, finalmente, estava aos prantos. A frieza no coração que estava sentindo até então, tinha sido substituída por uma emoção profunda e profusa. Ela soluçava, ria e chorava ao mesmo tempo e sequer conseguia balbuciar qualquer palavra. Ela estava viva! Havia resistido ao vírus, que assolava a humanidade e estava lá… viva para contar a história, abraçar seus amigos e sua família, que ela amava tanto. A mudez, paralisa e apatia do início da noite era fruto dos dias de angústias e incertezas, falta de sol, do banho de mar. Luto coletivo. Luta pela vida. Mas, a esperança e a expectativa se renovavam naquela noite. Inocência e ilusão? Fato é que muitas pessoas ao redor do mundo todinho, naquela noite, no mesmo segundo, imploraram e evocaram um pensamento poderoso, que se materializava em um audível uníssono: que venha a vacinação!